Por Catia Simon
Maria Valéria Rezende é uma escritora premiada e conhecida dos gaúchos e gaúchas. Recebeu vários prêmios, entre eles o Jabuti em 2015 pelo livro Quarenta Dias que tem sua trama ambientada na cidade de Porto Alegre. Não bastasse esse vínculo textual, publicou com a Casa Verde Ninhos de haicais (2018) cuja editora Laís Chaffe é também a diretora e roteirista do documentário Mesmo que tudo dê errado, já deu tudo certo (2022) sobre a vida da referida escritora.
Há muito que dizer sobre a trajetória aguerrida dessa santista de nascença e paraibana de coração. O trabalho desenvolvido com a alfabetização nos moldes de Paulo Freire e o movimento denominado Mulherio das Letras em que foi uma das idealizadoras, são exemplos da sua disposição em colocar a mão na massa. O movimento de mulheres escritoras deu visibilidade a um número expressivo, já passam de sete mil e estão espalhadas de norte a sul do país e também fora dele, como Portugal, Espanha, Estados Unidos, Alemanha, etc.
A escritora pesquisou ao longo de quarenta anos as mulheres na Igreja da América Latina. Iniciou esse trabalho nos anos 80 quando viveu no México por oito meses. Ela disse, em entrevista na live Digressões Clariceanas 1 ter inventado esse projeto porque já andava desconfiada sobre essas versões da loucura. Não achava nada de próprio punho das mulheres, somente os homens falando sobre elas. Resolveu buscar nos arquivos das Igrejas, começou em Puebla. Encontrou muita coisa sobre Juana Inés de la Cruz e cartas diversas. Daí em diante, segundo ela, pegou mania de buscar em arquivos das Igrejas material produzido pelas mulheres e quando virou escritora resolveu aproveitar esse material de pesquisa. Como foram milhares de cartas, pensou que o formato deveria ser esse. A quem destinar as cartas, pensou. Maria I, conhecida como Rainha Louca seria a destinatária perfeita, pois sempre desconfiou que ela não era louca nada, inventaram isso em razão do poder. Como escrever com a cabeça de feminista do século 21, uma personagem do século 18, foi outro desafio. Então usa esse questionamento para colocar a loucura das mulheres em pauta.
Carta à Rainha Louca é o quinto romance, publicado em 2019, pela editora Alfaguara. O romance está dividido em quatro partes que indicam os seguintes anos: 1789, 1790, 1791 e 1792. A narradora é Isabel das Santas Virgens que foi presa no convento de Recolhimento da Conceição e decide escrever à Rainha Louca. O livro tem 144 páginas e o lemos praticamente em uma sentada, pois ainda que a moça denuncie os maus tratos e a discriminação sofrida, o faz com que um sorriso de canto de boca acompanhe a leitura por constatarmos o quão pouco a sociedade mudou. Mulheres loucas vêm de longe. Rimos ao longo dele pela forma enviesada ou rasurada de dizer as verdades prenhes de lucidez da narradora. Suas desventuras são de todas as mulheres e transitam secularmente sem obstáculos. A escritora Maria Valéria Rezende na live referida nos diz que as ditas minorias são vencidas mesmo não sendo minoria numérica, muito antes pelo contrário, porque são convencidas de sua inferioridade racial e de gênero.
“Muito tenho hesitado em escrever-Vos, pois bem sei que mesquinhos são os infortúnios que Vos hei de relatar se comparados àqueles que, desde régia infância certamente tendes passado, que Rainha sois, mas nem por isso sois menos mulher, e sofrer e chorar é o quinhão de toda a filha de Eva, (…)
A narradora descreve toda a má sorte e abusos sofridos por parte de homens e até mesmo os santos homens da santa igreja católica. Muitas vezes sua escrita traz verdades duras às instituições e então rasura, risca com receio de ser interpretada como louca:
(…) não obstante sua condição nesse mundo, porque em todas as condições, aqui nestas colônias, em África, nas Índias, na China ou no Reino, no paço real ou na mais pobre aldeia do Vosso Império, estão submetidas às leis dos homens que muito mais duras são para as fêmeas e só para elas se cumprem
A seguir pede perdão pela rasura, como se as palavras a dominassem e descessem voluntariosas da cabeça para o papel:
“Corria a pena levada por inconvenientes palavras que teimam escapar do sítio onde trato de tê-las bem atadas no meu espírito – já que delas não me posso livrar – para que não me venham a fugir pela boca e dar razão a quem por louca me toma.”(10)
Por meio dessa estratégia, aparentemente simples, a escritora desfia as teias da vida de Isabel das Santas Virgens e sua senhora Blandina. Por meio delas os pecados de todas as loucas e bruxas que ousaram sair do quadradinho estipulado pelo patriarcado.
Isabel das Santas Virgens tomada pelo desespero, por vezes, não poupava nem mesmo a corte da Rainha, ainda que rasurasse o raciocínio certeiro: “(…) havia apenas que esperar, pois nada podíamos por nós mesmas, como bem sabeis, Senhora, nós que não somos rainhas nem astuciosas damas de Vossas Corte”(87). Ela também foi Joaquim, uma das formas que utilizou para driblar a excessiva vigilância e inércia própria às mulheres da época: “Assim vivi, eu, Joaquim, homem livre, útil à cobiça dos outros e à minha própria sobrevivência, (…) pág. 115
A narradora faz questão de chamar a atenção para o fato de que sempre onde há opressão os interesses econômicos e a vaidade andam junto, ainda que rasure a verdade incontornável:
“Sem jamais suspeitarem da minha condição de fêmea, segui com os demais por rios e estradas (…) por onde vêm e tão várias mercadorias proibidas e por onde voltam, quase sempre por contrabando, o ouro em pó e as pedras para a vaidade dos Reis e da nobreza.(pág.117)
Com essa leitura é possível adentrar no século XVIII atravessando outros séculos pela escrita de uma mulher pobre. O registro em papel roubado é uma desesperada tentativa de Isabel das Santas Virgens manter a lucidez e resgatar a sua dignidade e a de tantas outras mulheres abandonadas e esquecidas no passado e no presente.
Notas
1 – Digressões Clariceanas é uma live de entrevista mensal produzida e apresentada por Cátia Castilho Simon e Liana Timm, veiculada pela Território das Artes no Facebook e Youtube, desde 2021. O foco desse trabalho são as pessoas que se destacam na produção, reflexão e construção da cultura brasileira. A entrevista com a Maria Valéria Rezende é o 16º episódio.

