CORONEL FALCÃO, por Fernando Neubarth

Nota do autor: O coronel Falcão é o narrador-personagem de Memórias do Coronel Falcão, de Aureliano de Figueiredo Pinto (1/8/1898-22/2/1959), médico, escritor, poeta.  O romance concluído em 1937 foi publicado somente em 1973, graças aos cuidados de Carlos Jorge Appel, com a colaboração de Antero Marques, Henry Saatkamp e José Antonio de Figueiredo Pinto. Esse texto foi publicado originalmente no Caderno de Cultura de ZH, no sábado, 31 de julho de 1999, para uma série especial sobre os 20 personagens da Literatura Gaúcha do Século 20. O coronel Falcão mantém-se vivo.

Quem é o Coronel Falcão? Já vou perguntando e respondendo, sabedor que muitos talvez pouco dele tenham ouvido falar. Pois o coronel é um pouco tu e eu e nossa eterna crença na boa vontade dos homens. Não é à toa, portanto, que dele poucos saibam. O coronel, em memórias, descreve suas paixões. O amor pela terra, essa nossa mesma terra, o cuidado com os animais e a lida do campo, num fervor que beira a religiosidade e remete ao princípio dos tempos. O valor da chuva na aridez do solo, o conforto da sombra de um capão no dia de sol abrasador, o benfazejo passeio na fresca da noite sob o luar aceso e amigo. Mas vai além, com a disputa pelo governo municipal, mosca azul que um grupo de velhacos interesseiros trouxe a bordo de um Ford (ah, esses Fords), no final da tarde de esquila.

– Cayó el velo!

– Cayó la felpa!

A lã recém tosquiada, a ficha atirada como pagamento ao esquilador. Meteu-se na política. Bigodes e barbicha à Julio de Castilhos, faltava-lhe a aprovação do todo-poderoso. E seguiu intrépida comitiva a Porto Alegre, para audiência com Borges de Medeiros. Impagável estada de tronchos e macanudos na Capital, com direito a footing na Rua da Praia, noitada no Clube dos Caçadores e um didático e elucidativo Congresso Rural na Biblioteca Pública. Além da audiência, é claro, quando dá-se o já folclórico diálogo de um chefete do Interior com o Chimango: “- Eu penso, Excelência, que…-. Os olhos do Presidente deflagraram chamas como os canos em fogo de uma pistola antiga. – Você pensa que pensa – quem pensa sou eu!”

Ganha a intendência do município e a zoada constante das verejeiras e puxa-sacos, Falcão vai perdendo o domínio da estância em dívidas com os bancos e no desmazelo com o que é seu.

Em paralelo, o amor pela mulher de um próximo, num jogo de sedução e perigo que compromete até a saúde. Chamado à razão pelo amigo médico, Doutor Camerino, luta pelas reformas necessárias e vai, dia a dia, conquistando inimigos às custas de interesses desfeitos e privilégios em risco. Os mesmos que o alçaram cassam-lhe o poder num plebiscito. Com o aval do Chimango.

Vai-se a mulher amada, Stelita. Tomam-lhe a estância. Vê com pesar desfazerem-se os ranchos e famílias dos agregados. Reconcilia-se com a vida, morando de favor nas cinco quadras de campo escrituradas em nome do afilhado, o negrinho Periquito.

Aureliano de Figueiredo Pinto segurou o romance Memórias do Coronel Falcão por anos e não chegou a vê-lo publicado. Contam que tinha algum receio, a história toda era muito recente. O poder centralizador atraindo e, consequentemente, enfraquecendo o poder dos homens de estância. Principalmente aqueles mais próximos dos seus, que frequentavam a charla dos galpões e compartilhavam o mate da peonada em volta do fogo de chão. Na construção da consciência do coronel Falcão e na presença marcante de viventes como o Periquito, o Nico Fermino, o Velén, a comadre Esméria e a comadre Veva, o Macanudo, o Ventania – dividindo-se entre o respeito aos chefres e a idolatria às cadornas -, Dona Cachucha, Dona Biduca, Pancho Fartura, De Rios e Barros, o Moreira, o Caravelas, a representação do mundo e da humanidade.

Não se enganou Aureliano – a história ainda está quente, ferve. Leitura obrigatória para nós que nos achamos, Falcão, os politizados. Continuam as sanhas fiscais e as tosquias exageradas. Inquietos, balimos sentidos, caminhando meio assim sem rumo, seguidos de cordões panúrgicos à toa, desenhando esquisitos arabescos bordados a fios de lã na lona macia dos campos. E lá no alto, voejando ou grimpado na mais alta fronde, sempre bem penteado, poseur e rempli, bem-nutrido com carne de cordeiro alheio, um carancho nos observa.

Aprendeste, Falcão: para manter o alambrado estira-se fio a fio, aço, teso, rijo. De moirão em moirão, trocando um podre, muda-se um mestre-esquineiro aqui, sacode-se fora alguns balancins lascados lá adiante. – “Porque se a gente não se dispõe, um dia a endireitar um pouco a cerca velha, tudo leva o diabo…”.

E, no mais, cada chancho a su estaca… Ou, como diria, o Nêgus do Hotel, passado mais um entrevero entre facções políticas, por certo discutindo conveniências de favorecimento a poderosos: – ” Me traiz um chimarrão, minha véia, porque já se acabou a estrepolia destes bobaiãos…”.

Fernando Neubarth é médico, graduado pela FAMED/UFRGS (1983) e especialista em Clínica Médica e Reumatologia. Escritor de literatura de ficção, autor de livros de contos, crônicas e participação em antologias. Vencedor dos prêmios Açorianos e Henrique Bertaso, em 1994, e Prêmio Nacional para Médicos Escritores, em 2000. Autor de Olhos de guia (1993) e À sombra das tílias (1999).

  1. Acredito que o papel da resenha literária é aguçar o apetite do leitor com relação à obra abordada. Nesse caso, missão regiamente cumprida, Fernando! Longe de academicismos, citações tediosas “y otras yerbas”… Eu, que não nasci para a literatura nestes pagos, profundo desconhecedor dos textos do Aureliano, vou logo atrás de resolver esta carência. Obrigado!

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