DE ‘A INEVITÁVEL FRAQUEZA DA CARNE’, de Wilson Gorj

Aqui, o prólogo de A inevitável fraqueza da carne,
de Wilson Gorj, publicação da Penalux, de 2023.

E o livro? Sai quando?

Por trás do balcão, o garçom puxa conversa comigo enquanto abre a cerveja e vai enchendo devagar meu copo, mantendo certo cuidado para não espumar muito.

— Sinceramente, não sei — respondo, depois do primeiro gole. — Ainda estou nos ajustes finais. Talvez demore um pouco.

Esse rapaz é o único auxiliar que o dono mantém nesta birosca que frequento desde que me mudei para cá há poucos anos. O fato é que não cheguei a comentar nada com ele sobre o livro que estou terminando, mas o intrometido tem esse péssimo hábito de escutar a conversa dos clientes, muitas vezes comentando-a depois com a naturalidade de quem participou do papo.

Sim, estou concluindo meu romance.

Sobre isso tratei apenas com um amigo, que veio me visitar na semana passada, ocasião em que eu o trouxe para cá, ao boteco do Tavares, a fim de apresentá-lo à especiaria da casa.

— A porção de torresmo daqui é excelente. — O cheiro que vinha do outro lado do balcão depunha a favor do meu comentário, de modo que aguardávamos com água na boca (e nessa água havia uma boa dose de lúpulo, malte e levedura).

Esse amigo era um conhecido meu de longa data. Por um tempo perdemos o contato, mas tínhamos nos reencontrado num show de uma dessas figuras remanescentes do rock nacional, um sucesso da década de 90. Eu já tinha ido à casa dele em outra cidade não muito longe daqui. Agora ele me devolvia a visita. E cá estávamos nesse começo de tarde em que brindávamos a retomada de nossa amizade.

A porção tinha sido servida, as garrafas de cerveja, trocadas algumas vezes. Foi quando entramos no assunto do livro, o e eu resumi do que se tratava:

— Uma história com fortes traços autobiográficos.

O amigo, leitor tarimbado, torceu um pouco o nariz.

— Mais uma autoficção vindo por aí.

Estranhei o tom levemente debochado. Ele percebeu e alegou que, de uns tempos para cá, vinha notando nas livrarias um aumento de romances com essa proposta.

— Livrarias é um modo de falar — ele se corrigiu —, porque, para ser sincero, tenho comprado muito mais livros pela internet. — Seu olhar ainda brilhava de um jeito irreverente.

— Não pense você ser meu único amigo escritor. Conheço uma boa leva, alguns consagrados até, outros nem tanto, que acompanho pelas redes sociais. Por isso tenho visto que essa temática da autoficção tem sido bem recorrente. Confesso que não havia pensado nesses termos quando comecei a escrever meu relato meio ficcional, meio autobiográfico.

O amigo prosseguiu, quase professoral:

— O que caracteriza esse tipo de romance é ser contado na primeira pessoa.

— Não sabia que era uma vertente saturada — respondi após encher o copo dele. — Quem sabe eu deva reescrever minha história. Mudar o foco narrativo.

— Não se dê a esse trabalho. Se o livro for bom — ele pausou a fala para bebericar mais um pouco de cerveja —, tanto faz que seja na primeira ou na sétima pessoa.

A seguir me pediu para lhe enviar por e-mail o arquivo com os meus originais. Mostrou-se interessado em ler e opinar a respeito. Claro, se isso fosse também do meu interesse.

— É, sim — assenti. — Mas antes preciso dar mais uma burilada na escrita, ajustar algumas partes, enfim, revisar de novo.

Ele concordou com a cabeça. E disse:

— Se precisar de um revisor profissional, é só falar. Posso indicar alguns.

Agradeci e mastiguei o último pedaço de carne da nossa porção.

A conversa caminhou para outros assuntos, mas meus pensamentos teimavam em abandonar esse ponto. Embora ele conhecesse certos aspectos da minha vida, principalmente os episódios mais recentes, achei curioso que ele não tivesse me perguntado nada sobre o enredo do livro, mais precisamente sobre o que eu havia colocado de ficção em cima da minha história. Quem sabe ele não tivesse tanto interesseassim, tendo em vista que eu poderia ter falado muito mais sobre a trama que desenvolvera. Ou vai ver ele não quisesse dar esse gostinho ao garçom, sempre por perto, com seus indiscretos radares de escuta.

— Por favor, traga outra cerveja para nós.

— E mais uma porção de torresmo — completou o amigo.

— Esse esfomeado mal deixou para mim.

UMA SEMANA se passou e cá estou de volta.

Em frente, do outro lado da rua, tem uma sorveteria. A placa, que ostenta o nome A Cremosa, é enfeitada com picolés coloridos e vários cones com bolas de sorvete.

É um local todo envidraçado.

Daqui eu consigo ver um jovem casal. Não sei quem é o cara com jeito de surfista: cabelo parafinado, os óculos escuo ros pousados sobre a cabeça como uma tiara. A moça, eu conheço bem. É uma das personagens do meu livro.

Esse livro que agora já não me animo tanto a concluir e, muito menos, publicar.

Afinal, como convencer os outros que o enredo traz mais ficção do que elementos extraídos da realidade?

Os poucos leitores dessa cidade, no caso de ocorrer por aqui algum lançamento, saberão ler o livro como uma experiência meramente literária?

E as pessoas retratadas na minha história?

Mesmo que veladas por outros nomes e caracterizações, não seria muito difícil identificá-las em minhas páginas. É quase certo que ficariam indignadas por se verem transformadas em personagens e expostas aos comentários de seus conterrâneos.

De tal modo, será justo expô-las assim, a serviço de uma publicação que provavelmente não terá relevância nenhuma?

E quanto a mim? Estarei pronto para enfrentar as consequências dessa exposição?

Talvez eu devesse me mudar de novo, ir para outra cidade, lançar o livro longe daqui. E, por segurança, assiná-lo com algum pseudônimo.

Ou talvez seja melhor mesmo desistir, não publicar nada.

Posso, ainda, ser mais paciente, esperar um tempo antes de lançar o livro. Deixar passar alguns anos.

Tantos anos até que vire uma obra póstuma.

Imagem: Penalux, capa do livro. ISBN: 978-6558624455
Bookcover based in https://bigcatfacts.net/

Wilson Gorj nasceu em Aparecida (SP), em 1977. É autor do livros Sem Contos Longos (2007) e Prometo ser breve (2010). Antes, porém, de investir na microficção, teve contos e poemas premiados em concursos literários, alguns, inclusive, publicados em antologias. Seus minicontos também estão presentes nas antologias Contos de Algibeira, editora Casa Verde (RS), e Entrelinhas, editora Andross (SP).

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