DE ‘CARTAS DE LIBERDADES’, de Marli Silveira

Reproduzimos trechos da novela epistolar
de Marli Silveira, Cartas de liberdades,
pela editora Bestiário, de 2023.

Santa Cruz do Sul, 08 de novembro de 2022

Estimado Elephante’48,

Nos últimos anos, não saberia dizer desde quando exatamente, tenho me colocado a difícil, penso que impossível tarefa de me relacionar com as pessoas sem o peso dos preconceitos, sem partir de conceitos e definições anteriores. Lendo sem as reticências devidas, tão logo perceberá que é comum lermos ou ouvirmos o que acabei de escrever. Peço sua paciência afetiva, pois realmente tem sido meu exercício humano e, porque não, amoroso, permitir que s pessoas se digam, nos últimos meses, que você se diga. Sabemos que nossa relação não é simétrica, dizer o que se passa e como se passa, implica especialmente sua condição. De outra parte, preciso considerar que seria ilegítimo confidenciarmos nossas cartas sem que para elas dedicássemos a radical permanência impermanecida de nós mesmos.

Confesso, contigo, que não posso explicitar a experiência do estar recluso, pois existe uma materialidade própria do encarceramento, implicações que se reverberam a partir de tonalidades e direções que não me são próximas. Por oportuno, considero que como modos de ser relacionais, podemos minimamente imaginar o sofrimento, a dor e contextos da prisão. Há um fundo ontológico que nos aproxima, que é nossa vulnerabilidade. Acredito que a condição da nossa vulnerabilidade pode servir como indicativo de uma socialidade produtiva (poética) e humanamente compartilhada.

Dez anos de cárcere, da altura da sua experiência, é absolutamente diverso da ambiência da qual me lanço, mas preciso ancorar minhas palavras no que chamaria de vontade de afeto, me incluindo, em algum sentido, pelo limite do ficcional, ou até onde alcança nossa imaginação. Claro que precisamos contar uma história sobre nós mesmos, sobre a origem das coisas, estabelecer um ponto a partir do qual podemos içar as nossas amarras para poder partir, mas há sempre um fundo concernido de outros.

Não disponho de elementos suficientes para afirmar, mas tenho me convencido de que é a nossa relação com o tempo que determina nosso modo de ser no mundo. Saber lidar com o tempo é e deveria ser nosso maior aprendizado existencial, pois quanto mais sabemos lidar com os sentidos desta estranha impermanência acontecida por cada um, mais suportaremos suas implicações.

A questão de fundo não é (quase bordão) “viver o momento”, “o agora”. Aproveitar a vida e seus instantes porque podemos morrer a qualquer momento. A questão é compreender o quanto somos responsáveis pela nossa vida. Não temos como pendurá-la em um cabide, dispensando nossa existência dos momentos pesados e ou “intermináveis”. Não temos como agarrar um fragmento de tempo que potencializa nosso ser, eternizando o êxtase da satisfação. Não temos como encurtar a necessária espera e nem comprimir tempos que se arrastam deixando cicatrizes enormes. Estar melancólico, triste, saudoso, entediado ou angustiado, desentranha-se como disposição afetiva que informa nosso ser, diz como estamos. Senti-las implica que a nossa corporeidade não se desenha enquanto maquinaria, mas sensível a tudo aquilo que é diferente de nós (que não é a gente mesmo). Eis a máxima: aprender a habitar os êxtases, deixando-se tocar pelos sentidos da existência que se aprofunda no mundo, sem permanecer em um dos afetos, entrincheirando-se à sua tonalidade.

Quando passamos a sentir o mundo apenas a partir de um afeto, os sentidos do tempo são arrastados pelas suas nuances, autonomizando um dos seus aspectos, implicando nosso modo de ser no mundo. Viver é acontecer-se e a acontecência mais adequada aos sentidos do mundo é aquela que compõe. Compor não é aceitar as determinações, mas compreender sua existência como implicada pela clareira que mostra e esconde, estende e retrai, é e ainda-não.

Acredito, por conta disso, que algumas pessoas compõem com o mundo, se colocam de tal modo que parecem atender a uma espécie de destinação. É como se ouvissem um clamor próprio e habitassem o mundo em uma proximidade poética. Criam um modo de vida incapaz de provocar o que existe, encantando o tempo para que a crueza dos dias seja menos estúpida. Sabem acolher o passado, o presente e o futuro, abertos em suas inteirezas, dispondo-se, ouvindo a voz da sua própria condição. “Encantar o tempo, é isso que devemos fazer a todo instante, laçar a vida e ir segurando no exato limite que ela, ao ir se soltando, não nos deixe com a sensação de que não somos nada”. Quanto mais encantamos o tempo, mais contamos histórias, pois somente as contamos porque, de alguma forma, nos sobramos no tempo. É como se permanecêssemos nas pequenas coisas, por alguns instantes, e pudéssemos narrar uma história sobre nós mesmos.

Saber ler sem a pressa dos “alfabetizados” que devoram informações; ler como quem compreende menos a palavra e mais o dizer; demorar-se e ao esticar-se no espaço-tempo, experimentar a completude de uma vida singular. Da altura da minha percepção enviesada, desejo encantar o tempo para entregar a cada um dos outros uma história menos difícil de ser vivida.

Com estima,
Marli Silveira

São Borja, 24 de novembro de 2022

Prezada Professora Marli,

No próximo dia 17 de dezembro, completa-se 3 anos que a minha mãe faleceu, quase não acredito que aquele rostinho tão querido e tão afável não existe mais, apenas nas fotos e nas lembranças doces gravadas na minha memória! Quase toda semana eu sonho com ela, que está sempre bem alegre, me abraça, me convida para os quitutes que só ela sabia fazer… Lembro que quando eu recebia a sua visita, era seu costume fazer uma surpresa, pegando um táxi ou uma carona e chegar sem avisar, quando eu menos esperava, lá estava ela, paradinha no corredor em frente a minha cela, aquela pequena mulher com o coração incomensurável de tão grande e generoso! Essas lembranças me são preciosas, ricas, porém, também dolorosas e, de alguma maneira, me machucam. Estou trabalhando a mente e o coração sobre isto, talvez seja dolorido porque após tantos anos, eu sei que minha saudosa mãe não estará no portão lá de casa, no dia em que eu voltar. Isso me dói e corrói muito, procuro não pensar e nem comentar com outros companheiros, apenas com Deus e com a minha esposa, que sei que me entendem de verdade!

Creio que uma das maiores, senão a maior pena e o maior castigo dentro de um presídio é a saudade de quem se ama, e quando essa saudade torna-se permanente, contínua, mesmo que a pena acabe, o sentimento ainda é de reclusão, uma dor que não acaba.

Compreendo que ela, enquanto ser espiritual agora, aguarda por algo melhor e maior como galardão doado pelo Criador. Isso é algo que me conforta até certo ponto, também tenho procurado alcançar melhores pensamentos a respeito disso.

Ao longo do tempo conheci vários outros que também perderam pelo menos um familiar, em especial, mãe. Alguns nem puderam ser levados para despedir-se, pelos mais variados motivos, principalmente a pandemia. Eu desconhecia e sentia-me inútil ao tentar consolar um companheiro em tal situação, até o dia em que chegou minha vez de precisar de um ombro amigo e ter certeza de que não havia NENHUM dentro da cela, onde eu estava, ninguém foi capaz de me dar um aperto de mão, tal foi o egoísmo dos demais levados a assim agir por sugestão do outro apenado, que não devemos demonstrar afeto, uma grandessíssima besteira!

Com estima e respeito,
Elephante’48

Santa Cruz do Sul, 16 de dezembro de 2022

Estimado Paulo César,

Escrever é dar fisionomia ao verbo, alargar o instante no acontecimento infletido do dizer. Escrever é um dos modos de se segurar o tempo, perfazendo uma geografia que se estende entre as coisas do mundo. Quando você se diz, mas também assume uma postura dizente, interpõe seu modo, implicando sentidos que se abrem a partir de contextos compreensíveis. Já não podemos ignorar a pronúncia quando em jogo está a própria condição humana.

Acredito na potência da literatura, penso nas nossas cartas como um modo de se fazer/ser literatura, e na capacidade que a mesma, não creio que toda, tem de se oferecer como ponte, estendendo implicações de mundo. Há sempre um gesto literário mediando as relações e incorporando fisionomias nas horas que correm endoidecidas, fazendo crescer uma horizontalidade que pressiona a linearidade da mandíbula perversa de Cronos.

Nos últimos anos, sem desperdiçar o que ainda pode a métrica do transcurso, passei a me contar pela experiência da afirmação existencial, obrigando o calendário da minha vida a abrir grandes brechas na agenda dos meus dias. Sei, contudo, que ainda não tenho uma resposta satisfatória para pensar práticas que sejam capazes de alargar o instante, inclusive, nem mesmo compreendo perfeitamente se há uma diferença entre viver e contar e se o tempo vivido seria uma forma de aproximar a inscrição da existência particular no tempo desnudado pela experiência comum. De outro, não consigo ignorar a psicagogia inerente às experiências que considero fundamentais, como é a experiência da quase morte, da finitude e da reclusão. Como acredito na performatividade humana, embora considere os limites de se abusar da ideia de uma autonomia que já não seja ressoante dos esbarrões do mundo, tenho defendido uma concepção de liberdade que se arvora das experiências de si. Por conta disso, acredito na sua liberdade quando você se diz, principalmente, quando pode se imaginar em outros lugares, ocupando geografias sensíveis que pautam maneiras de se movimentar entre limites. Por óbvio que não desconsidero a corporeidade alastrada no jogo das celas e espaços calculados, como um marca dor que impele e constrange corpos pautados apenas pelo dentro. Compreendo que jamais poderei dizer seu modo e suas dores, viver é sempre uma experiência pessoal, mesmo que atravessada por sentidos. Preciso considerar, por obra da humanidade que cultivo, que imaginar é um modo de tentar com.

As experiências-limite são experiências que aproximam contextos que implicam não apenas o que é da ordem do propriamente vivido, como do que pode ser antevisto, desencobrindo nervuras sobre as quais aderimos enquanto viventes afetados pelas impressões existenciais. Explicitam a tênue e necessária relação entre lembrar e esquecer. Quando nos contamos, escolhemos a forma de nos inscrevermos na temporalidade que é nossa, insinuando um jeito menos pungente de suportar as incapacidades de um modo sempre à procura/perda de si. Principalmente, porque morremos infinitamente todos os dias e a contínua lembrança do que não poderá ser mais vivido e da alarmante impossibilidade futura, nos entrega sempre devedores de nós mesmos.

Desconfio que a arte é continuação daquele mesmo gesto de inscrição que implicou de fisionomia um tempo que desejou ser apenas fuga, engolindo as dobras que curvavam seu dorso sobre o mundo. Que a criação não é uma obra extenuada dos encontros, mas o enlevo que torna possível cantar a vida.

Com estima,
Marli Silveira

Marli Silveira é natural de Santa Cruz do Sul, Mestre em Filosofia (UFSM), Doutora em Educação (UPF) e atualmente realiza Estágio Pós-Doutoral em Letras na Universidade de Santa Cruz do Sul, onde também atua como Professora Colaboradora. Poeta e escritora, com vários livros publicados. Autora de artigos e trabalhos acadêmicos. Organizadora e autora de obras literárias, biografias e obras coletivas. Foi secretária e coordenadora de Cultura de Vera Cruz (2005 a 2008, 2014 a 2015), Coordenadora de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura de Santa Cruz do Sul (2009-2012). Sua dedicação à cultura tornou seu trabalho reconhecido, recebendo prêmios por iniciativas e projetos que têm como foco o desenvolvimento cultural, a democratização do acesso e a promoção da diversidade cultural e literária, entre os quais o Prêmio VIVALEITURA 2016 (MinC,MEC e OEI) e o Prêmio Trajetórias Culturais — Mestra Sirley Amaro na Categoria Diversidade Linguística, Livro, Leitura e Literatura 2021. Integra, entre outras, a Academia Rio-Grandense de Letras (ARL), a Academia de Letras de Santa Cruz do Sul e a Associação Gaúcha de Escritores/ AGES). Em 2017 foi eleita Patrona da Feira do Livro de Vera Cruz-RS, em 2019 escolhida Patrona da Feira do Livro de Gramado Xavier- RS. Marli Silveira estreou na Editora Bestiário em 2021 com o livro Quantos dias cabem na noite.

  1. Apresentei o livro, da poeta Marli Silveira, em um evento e foi simplesmente maravilhoso. Repito, é uma obra fundamental.

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