Por Salvador Baladán
O livro, La cabeza del cordero (1949), de autoria do escritor espanhol Francisco Ayala, é composto por um prólogo do próprio Ayala e cinco romances curtos, A Mensagem, O Tejo, O Retorno, A Cabeça do Cordeiro e Vida pela Opinião. Cabe destacar que no prólogo o escritor se justifica sobre seu silêncio inicial em relação à literatura no pós-guerra imediato e relata seu retorno tardio ao palco da criação literária; neste ponto, Ayala demonstra certa inquietude em qual é o seu papel como escritor espanhol exilado na América, posto que, como também manifestou no prólogo de Los Usurpadores (1949), tentou, durante um largo período de tempo, se abster ao tentador trabalho de narrador de ficções, talvez pelo fato de se encontrar perdido no labirinto de sua própria sorte que o levou de ser um escritor conhecido em seu país, a um sórdido exilio que o fez passar de figura pública ao anonimato literário (mesmo que, em muitos aspectos, fosse um anonimato procurado), pois acreditou que seria precipitado expressar a situação política de seu pais em pinceladas estéticas; no entanto, no decorrer do tempo, voltou ao cenário da literatura e pede desculpas aos leitores que tenham julgado morta sua veia artística.
Ainda no prólogo, Ayala aborda a situação da literatura espanhola no início do século XX, e a descreve como um afazer artístico que se encontrava em plena explosão, de modo que os jovens escritores, herdeiros da geração do 98, se estremeciam em todas as inventivas propostas pelas vanguardas y posterior geração do 27. Todavia o autor aponta que com a realidade da guerra se viu na necessidade de abandonar a literatura para lutar através das armas que oferecem as letras, mas não como narrador de ficções, senão escrevendo nas áreas da politología, da sociologia e do direito, quer dizer, tentou mediante a escrita dos temas penosíssimos que tocavam ao seu destino, isto é, ao destino de uma nação que, repentinamente, se viu destituída de suas ilusões.
É deste modo que Ayala pede licença ao leitor em seu prólogo, para voltar a esfera pública da literatura, após uma década sem se dedicar ao exercício de narrador e destaca que sua geração de escritores, por conta da guerra civil, se transformou, em grande medida, num cemitério de promessas literárias.
Com respeito aos romances que integram La cabeza del cordero, podemos afirmar que são obras que abarcam frontalmente a temática da Guerra Civil espanhola, do exilio espanhol do século XX, da ditadura, assim como, do exilio interior, quer dizer da situação das pessoas que sendo dissidentes frente a ditadura franquista, tiveram que permanecer na Espanha no anonimato (pois nem todo mundo conseguiu se exilar); começaremos pela descrição de El mensaje, que é um romance anterior a guerra e nasce dentro de umas coordenadas absurdas, das quais o protagonista adverte ao seu fortuito leitor desde o começo. Logo, uma vez que a historia se desenvolve, que não passa de uma ideia labiríntica e disparatada do próprio protagonista e narrador, este confessa dando a razão ao seu primo “el absurdo le hace perder a uno la cabeza, atrae como una sima” (AYALA; 2001. p. 39). Quer dizer, é banal, tanto a historia do primo Severiano complicado com um manuscrito cujo significado é ignorado por todos, como a de Roque, que por sua parte não pretende contar a historia, senão criticar a rotina atolada e mesquinha de seu primo, cuja realidade, julga ele (o protagonista), é tão medíocre que os coloca a ambos nas antípodas, mas ironicamente, enquanto a ação vai se desenvolvendo, o “crítico” protagonista não consegue se evadir da fofoca do bairro e faz, deste modo, que o leitor seja participante de uma história, aparentemente, carente de lógica, incongruente, posto que sua “medula” é insubstancial. O curioso neste romance radica nas voltas cíclicas de uma existência vazia na qual todas as personagens tem se visto implicadas, inclusive o protagonista, que podendo escolher o que narrar em sua prosa acaba, ao parecer, de forma involuntária ou impulsado pela própria curiosidade momentânea, narrando a historia de uma absurda mensagem, enigmática, em cujo redor, a historia, como por passe de mágica cria um corpo que logo se desaparece num sem sentido. Como manifesta Ayala em seu prólogo, esta mensagem indecifrada poderia ser uma espécie de pressagio sobre as vésperas da Guerra Civil que logo cobriria toda a Espanha em caos.
El tajo é o segundo romance do conjunto e está ambientado dentro da guerra civil espanhola e posterior ditadura franquista, e traz à cena as cruas realidades da guerra, em que, como observa Millán Arana (2022), o tenente Santolalla, combatente por parte dos sublevados, sofre o drama de ter matado a um “vermelho” compatriota seu, num encontro acidental. O romance se compõe de quatro capítulos, a ação se desenvolve em torno ao sentimento de culpa e arrependimento do protagonista; em última análise, o assassino do único morto naquela frente em que não houve combate. Assim, mostra a realidade dilacerada de gerações que se mataram sem motivo real, a não ser para cumprir ordens absurdas. É possível analisar, a nível metafórico, o próprio título de El tajo, que, em primeira instância, alude ao rio que atravessa (e, portanto, divide) toda a Espanha na sua parte central, seguindo o seu curso desde o leste ao oeste até chegar a Portugal. Desta forma, alude a uma profunda divisão da sociedade espanhola em dois lados inconciliáveis. Além disso, devemos considerar o significado da palavra tajo que sugere, mais do que uma divisão, um corte na carne, um corte profundo e liso; por outro lado, também a nível metafórico, Santolalla aparece como sublevado – como vitimador, representante do lado vencedor da guerra e, portanto, usurpador do poder legítimo– enfrentado a Anastacio López Rubielos – representante da Espanha republicana, fiel ao governo, democrático, submetido a uma guerra ilegítima, vítima dos rebeldes, ou seja, parte do lado perdedor da guerra e, portanto, imerso na política de extermínio aplicada pelo lado insurgente e posterior franquismo. Ou seja, a vítima morre, injustamente, simplesmente por pertencer ao lado republicano ou, como diz a própria narrativa, por ser um “vermelho”. O desfecho da trama mostra como os republicanos, exilados internos como Ayala os chamava, vivem nas coordenadas do franquismo, já em 1941, três anos após o fim da guerra, em extrema miséria, vítimas da política de “limpeza dos vermelhos” dentro da Espanha nacional católica e tradicional, cuja legitimidade se baseava no Exército e na Falange como um partido único. El tajo é um romance que apresenta a purga dos corações espanhóis enfrentados em conflitos civis; uma catarse que também é metaforizada em diversas passagens da trama, como no confronto geracional entre o avô do protagonista e seu pai, a morte do cachorro Chispa, o confronto entre Rodríguez e Santolalla (quando ainda eram crianças) e o complicado final, que nos mostra que a paz de Franco nada mais é do que um esgoto prestes a explodir, pois é evidente o ódio no coração dos republicanos derrotados, silenciados pela resignação, pelo medo, pelo horror da guerra, pela fome da pós-guerra; mas, ao mesmo tempo, cheios de indignação e de ressentimento diante da realidade que tiveram que viver, em que o mais importante é comer para não morrer de fome, adaptar-se à realidade e sobreviver às vicissitudes de uma sociedade transgressora, violenta e autora de atos terroristas gerados no âmbito das burocráticas entidades estatais. Tudo isto fica evidente numa sutil atmosfera que aparenta uma paz almejada, mas que se traduz numa confusão arbitrária e paradoxal das personagens frente à realidade.
No romance El Regreso, composto por dez curtos capítulos, os temas centrais são vários, a começar pelo exílio, a brutalidade da guerra, a arbitrariedade do regime de Franco no decorrer de uma década de ditadura, após a vitória da guerra, e o próprio drama do protagonista exilado, que apresenta seu estado de animo perturbado, ao longo de sua existência entre as realidades que teve que viver nos dois lados do Atlântico, com saudades de sua pátria que, ao retornar, não é mais a mesma, porque ele já é outro. Assim, ao contrário de El tajo, a realidade da guerra é apresentada a partir da perspectiva de um homem “vermelho”, quer dizer, de um protagonista pertencente ao lado republicano que teve de lutar contra os inicialmente rebeldes e posteriormente vencedores da guerra. El tajo mostra-nos uma personagem que sobrevive à guerra e permanece em Espanha como pertencente ao lado nacionalista que é, apesar do sentimento de culpa pela sua forma injusta de proceder (vítima de alguma forma, também do absurdo da guerra); por outro lado, El regreso apresenta-nos, da mesma forma, um sobrevivente da guerra, um republicano, que teve de se exilar, pois, uma vez terminados os combates, já não havia qualquer acolhimento para ele na sua terra natal. , parte da escória da qual o país teve que ser limpo. A trama nos traz, através da experiência do exílio, uma personagem que não é mais a mesma pessoa que partiu e que, portanto, retorna a uma terra devastada pela miséria que a guerra deixa em seu rastro, que por sua vez, nem é a mesma terra que ele deixou quando saiu para o exilio. O protagonista deixa a entrever, através do drama complexo e contraditório que o atravessa por dentro, da saudade da sua terra amada – uma terra que só existe na sua memória, temperada pela sua nostalgia – a barbárie da guerra naquelas circunstancias em que as pequenas disputas interpessoais eram resolvidas como se fossem um assunto de Estado, exemplo disso é a traição de seu amigo Abeledo, que o traiu às forças rebeldes por ter noivado com Rosalía e não com sua irmã, María Jesús. O protagonista, sem nome próprio na trama, decide impulsivamente deixar Buenos Aires para retornar à Espanha e, ao chegar à sua terra natal, e ser informado de que, quase onze anos antes, quando explodiu a revolta civil, tinham ido à sua procura na casa de seu tio para prendê-lo, sob o comando do amigo Abeledo, ele revive, tomado de raiva, toda a Guerra Civil e determinado a enfrentar seu, agora, inimigo, dedica quase um mês a procurá-lo, até ficar sabendo que seu oponente havia morrido durante a guerra. Uma vez resolvido um ódio totalmente compulsivo e absurdo, o protagonista, sem se adaptar à nova Espanha, porque mudou muito nos dez anos em que foi arrancado da sua pátria, uma nação que já não é o que era e que vive imersa na ditadura, na pobreza e na mediocridade, decide voltar novamente a Buenos Aires. A trama revela implicitamente a um protagonista de caráter dramático que devido às suas experiências e convicções políticas, experimenta uma catarse ao reviver os acontecimentos da traição do amigo e após recordar a tragédia espanhola através da memória e purgar o coração do ódio da traição, decide deixar sua terra natal, uma terra à qual já não lhe pertence, à qual é estrangeiro.
La cabeza del cordero é um romance que também apresenta o exílio como eixo principal – um duplo exílio, se quiseremos – e como pano de fundo traz à tona um contexto beligerante – que é palpável a partir de várias perspectivas e tempos históricos – no qual se destaca a guerra civil espanhola à que o protagonista sobreviveu. Após uma surpresa mascarada e com o pretexto de narrar um encontro maluco com alguns supostos e desconhecidos parentes exilados da Espanha por volta de 1492, o protagonista, também exilado após a guerra civil espanhola, por volta de 1939, acaba revivedo, fruto da insistência de sua suposta tia (para saber o que havia acontecido com os Torres oriundos da Espanha), os traumas da guerra que ficaram tatuados em sua memória, pois, à medida que a trama se desenvolve, descobrimos a tragédia da qual cada um de seus parentes mais próximos e ele próprio foram vítimas na guerra. A narrativa, em linhas gerais, está dividida em quatro partes, a primeira é a chegada de José Torres a Fez e a sua surpreendente e inevitável encontro com seus supostos parentes, através da qual o protagonista fica imerso num labiríntico círculo genealógico de quase quinhentos anos. A segunda parte alude ao próprio ato do constrangedor jantar a que é obrigado a comparecer para homenagear aquele ramo ignorado da sua família mourisca que, por sua vez, quis homenageá-lo e entretê-lo sem reparo pelo fato dele ser cristão; a terceira refere-se à concretização da desejada despedida daquela estranha linhagem de sua família e à indigestão a que o levou à ação da passagem daquele dia agitado. Este é, talvez, o capítulo mais revelador, em que se apresenta o trauma que a guerra deixou ao seu passo e que ficou gravado em sua memória e nas suas entranhas; ou seja, o protagonista se vê refém de seus pensamentos, e de seu modo de proceder na guerra, cujas lembranças desagradáveis são somatizadas em seu corpo e metaforizadas através ideia da cabeça de cordeiro. De modo que, refém da indigestão, José Torres finalmente consegue expulsar de seu corpo toda a matéria ingerida durante a noite, cujo vômito catártico por sua vez o liberta de todas as aflições que o intrigaram durante todo o dia; o quarto capítulo é o desfecho daquela viagem absurda, à qual, como se fosse vítima das artimanhas do destino, o protagonista se expôs, assim, afirma ter ido abrir um negócio sem análise prévia e guiado pela intuição. Porém, no dia seguinte, dissipada a angústia e deslumbrado por uma nova forma de raciocínio, decide ir a Marraquexe montar a sua filial de rádio, fugindo, assim, daquela família ignorada, que nada tinha a ver com ele, foge, deste modo também, do seu próprio passado (recente), das memórias da dura guerra civil, da qual procura escapar desde o dia em que teve que deixar a sua terra natal. É, portanto, uma narrativa muito densa e profunda nos temas que aborda, sendo o exílio uma constante na família Torres, sempre vítima de vicissitudes políticas, pois, os Torres de Fez tiveram que abandonar as suas terras quando Granada caiu, porém, ao contrário do protagonista, cultivaram uma memória sobre o que restou ali, em Almuñécar, sobre eles e procuram restabelecer laços obsoletos, já que não se pode cultivar uma relação numa só geração que, apesar do sangue, foi rompida há séculos. O protagonista, por sua vez, tenta esquecer seu terrível passado e viver no presente e se projetar ao futuro. Enfim, contemplamos, então, em La cabeza del cordero as estranhas e labirínticas ondas cíclicas da história que se escondem entre as elaboradas sutilezas da ficção e o teimoso artifício da verossimilhança.
La vida por la opinión é o último texto, o que fecha o livro. Aqui o narrador, na primeira pessoa, relata duas situações absurdas derivadas da Guerra Civil, da ditadura e das implicações que o fim da Segunda Guerra Mundial teve na Espanha, abandonada por todas as potências envolvidas no conflito a uma ditadura vitalícia. A narrativa é de grande originalidade criativa, é uma espécie de metaficção em que o romance nasce dentro de si mesmo, isto é, depois de a arte narrativa já ter sido encaminhada e após diversas tentativas do autor de negar que o que narra seja uma ficção, numa teimosa tentativa de lançar uma sutil emboscada ao leitor entre as estreitas fronteiras que separam a realidade da ficção, nascem duas histórias, ambas absurdas. Quanto ao título, é surpreendentemente irônico, tanto que, como alerta o narrador “(…) A la invención literaria se le exige verosimilitud; a la vida real no puede pedírsele tanto.” (AYALA; 2001. p. 152); e é justamente sob esse argumento que o narrador protege sua ficção, que carece de verossimilhança devido ao comportamento absurdo de um dos personagens. La vida por la opinión trata, portanto, do abrupto ato de emancipação de um sevilhano que, tendo se colocado em cativeiro para salvar a pele durante a Guerra Civil Espanhola e a subsequente ditadura e aguardando o desfecho da Segunda Guerra Mundial, decide libertar-se da vida enclausurada (que levava para dentro de sua casa e se escondia – quando havia risco – num poço dentro de seu quarto), ao descobrir que sua esposa estava grávida. Ou seja, para evitar as fofocas e manter a honra, ele decide, agora, e não em tempos de guerra, arriscar a pele e, vendo a Espanha abandonada pela mão de Deus, atravessa o Atlântico em busca de melhor sorte, depois de seus nove anos de cativeiro. A primeira história, do mestre Ávila, é mais verossímil que a segunda, a julgar pelo próprio narrador, que em ambas procurou tecer uma dura crítica à realidade espanhola, nao só no tangente à guerra civil, mas também frente ao abjeto proceder das grandes potências mundiais assim que a Segunda Guerra Mundial acabou que não fizeram nada contra a ditadura de Franco. O narrador, com astuta malandragem, assinala, não sem razão, que aqueles que agora abandonam a Espanha à sua sorte foram os mesmos que não só a abandonaram, mas também a afundaram durante a tragédia espanhola e tece uma critica, desta forma, às inocentes esperanças dos espanhóis – incluindo ele próprio – que, entre a resignação e a saudade, esperavam por essa ajuda para sair das calamidades que a realidade da ditadura lhes oferecia. Como diz o próprio narrador, os espanhóis estão sempre prontos para abrir novamente el tajo y caer al hoyo (2001; p. 149). Apresenta-se assim uma segunda onda de exilados espanhóis que, vendo frustradas as suas últimas esperanças de regresso a um governo democrático, abandonam sua terra, em 1945, após nove anos de dolorosa sobrevivência em condições verdadeiramente precárias e bizarras. Ressalte-se que a narrativa se passa no Rio de Janeiro, de modo que imprime alguns traços biográficos do autor, já que, em 1945, Ayala morava na referida cidade brasileira, como sabemos (2010; p. 323-324).
Finalmente, como síntese geral La Cabeza del Cordero (2001), se compõem por um volume de cinco romances curtos, em que cada um apresenta um fragmento de uma guerra fratricida, quer dizer, cada um está alinhado, sob diferentes perspectivas, ângulos e pontos de vista, sobre a realidade da guerra civil espanhola e do exílio, e juntos formam um mosaico que nos permite ter uma ideia das barbáries que aconteceram na guerra; se trata pois de uma denuncia das crueldades que foram perpetradas entre irmãos de um mesmo país para desgraça de todos e fortuna de alguns poucos.

