Por Magali Lippert
“Foi nos tempos do Collor.” É assim que, no sul do Brasil, nos referimos àquele período de turbulência política, em que um homem desconhecido das massas – até sua aparição nos programas eleitorais – fosse eleito Presidente da República. A sensação de fracasso foi imensurável – acentuada por não ter sido em qualquer eleição, mas sim na primeira eleição presidencial democrática brasileira. O tempo de Collor presidente não durou muito, mas foi suficiente para consideráveis estragos psicológicos em boa parte da população brasileira. No sul do país, entretanto, é uma memória que não encontra ressonância. Guardamos no fundo de um baú imaginário e, quando emerge, tratamos de rapidamente deslocarmos bem para o fundo novamente.
É neste contexto que surge a sátira policial “Martelo Alagoano” de Thalles Gomes. Uma narrativa distópica em que a família Collor não é o tema do enredo, mas suas figuras pairam assombrando o povo alagoano que, diferente dos sulistas brasileiros, possuem a chaga aberta “no metro quadrado” mais caro de Maceió:
1993 foi um ano agitado para ambos. Ele, quarenta e dois anos, voltava da desventura em Brasília para o exílio nos milhares de metros quadrados de heliponto, piscina, quadra de tênis e serviçais escondidos numa rua sem saída no remoto loteamento de Murilópolis, em Maceió. Eu, nove, ocupando com pais, irmãos e cachorra a casa quinhentos e trinta e quatro da avenida principal, recém-financiada pela Caixa (GOMES, 2022, p. 19-20).
Acreditaria o povo alagoano em eleições depois dessa experiência humilhante de exposição nacional? E eis que surge a Senhora Santos, eleita prefeita de Maceió por sorteio público! A sequência dos acontecimentos envolve um imbróglio: o assassinato do caseiro de Collor, o desaparecimento do filho da prefeita e os fantasmas (vivos e mortos) que assombram o narrador, Jorge Otávio.
Mas para além da trama, muito bem construída pelo autor, os pontos altos da narrativa envolvem as iniciativas extravagantes da prefeita e as reflexões críticas do narrador sobre a cidade e a onipresença da família Collor: “Nada disso é verdade. A não ser que fui vizinho do Collor. A não ser do fedor de seu olhar. A não ser da barrinha que jogávamos todas as tardes em sua rua. Mas a pedra não saiu de minha mão. E ele nunca sumiu de minha vida” (GOMES, 2022, p. 19).
Se as reflexões do narrador são permeadas por indignação contida e remorso (a omissão acerca do assassinato do caseiro de Collor), no que diz respeito a Senhora Santos sua criatividade na administração de Maceió é infindável e atinge o âmago da elite financeira alagoense. Graças a sua iniciativa instituiu-se a “Campanha Língua de Cobra”:
Deveriam ser galerias subterrâneas para escoar melhor as águas da chuva. Mas, com as ligações clandestinas dos condomínios de luxo, hotéis cinco estrelas e restaurantes, transformaram-se em córregos pretos, viscosos e fétidos, que cortavam a areia da praia e desaguavam no mar (GOMES, 2022, p. 36).
A prefeita, então, mandou concretar todas as galerias ao longo da orla:
Não demorou para o esgoto começar a vazar pelos prédios, hotéis e bares. Ruas tomadas pelo fedor de mijo e fezes, turistas cancelando reservas, filhos de usineiros pegando leptospirose.
Quando a situação já ganhava proporções nacionais, com matéria no Fantástico, carreatas de Hilux, abaixo-assinado e ameaças de impeachment, a nova prefeita convocou uma coletiva.
̶ Agora que sabem qual a real da vida nas grotas, podemos falar à vera (GOMES, 2022, p. 37)
A excentricidade da prefeita e sua forma de fazer justiça “fazendo os ricos pagarem por seus crimes sanitários” contrasta com a viagem no tempo feita pelo narrador que, enquanto assessora a prefeita, é induzido a pesquisar a vida nos canaviais no interior de Alagoas, fazendo com que a narrativa por vezes descontraída desvie para um tom melancólico como no diálogo:
̶ A gente levanta quatro horas da manhã, aí vai tomar café às cinco. Quando é seis horas sai pro serviço. Seis e meia pra sete, a gente já tá cortando cana. Ganha por tonelada.
̶ E quanto é que tava a tonelada? [. . .]
̶ A tonelada tava por três reais.
̶ Quanto?
̶ Três reais.
[. . .]
̶ O corte de cana, para mim, é um dos derradeiro trabalho do mundo. Eu penso assim, né? Porque eu acho que o cortador de cana entra burro e sai burro. O que é que um filho da gente cortando cana vai aprender? Ele não vai aprender nada, porque é só cortar cana mesmo (GOMES, 2022, p. 69-70).
A ficção de Thalles Gomes traz como elemento original a criação de um personagem narrador que se coloca como coadjuvante enquanto vai tecendo uma trama intrincada e até certo ponto empolgante. A narrativa possui inúmeros momentos cômicos, mas parte do texto beira a amargura: a sofrida vida nos canaviais e a exploração deliberada dos trabalhadores pelos usineiros. A atmosfera de desvario presente na obra cumpre uma missão importante: o desmascaramento da elite rural e urbana de Alagoas. Entendo que “Martelo Alagoano” é uma obra que contribui para a reflexão do que nós, brasileiros, vivemos na década de 90, afinal as agruras do povo alagoano foram (e são) as nossas também.

