‘MEMÓRIA IMPURA’, DE LUIZ VADICO

Por Gonzalo Bolliger

O livro Memória Impura (2012, editora Novo Século) do desconhecido escritor Luiz Vadico, foi uma verdadeira revelação. O encontrei em um sebo em Campinas (eu sou do antigo regime: praticamente só compro livros que encontro fisicamente, dos quais posso ler trechos e analisar o estilo) e foi um dos melhores conjuntos de contos, a nível mundial, que eu já li.

O livro é conceitual e trata sobre personagens da antiguidade, alguns conhecidos e a maioria desconhecidos. Um escravo que conspira contra seus senhores para obter a liberdade; um filósofo que se apaixona por um de seus alunos adolescentes; uma jovem que entra para toda a vida a um culto de uma deusa; gladiadores que vivem ao mesmo tempo na glória popular, na pobreza e na morte iminente; o incêndio de Roma e os habitantes que fogem ou morrem; o imperador Augusto, sua esposa e um avassalador ciúme; guerreiros que se relacionam afetivamente/sexualmente ao mesmo tempo que entram em batalhas etc. Todas as histórias na Grécia e Roma. Exceto o conto bônus, onde o personagem é o próprio Jesus Cristo, e o final é nada convencional em relação ao cristianismo.

A obra, de forma geral, convence muitíssimo bem, transporta o leitor a esses tempos, em uma espécie de feitiço realmente acreditamos que estamos lá, vemos as cenas e pensamentos dos personagens como sendo retratos fidedigno daqueles tempos. Poucas partes soam como anacronismo (eu diria uns 3 ou 4 trechos pequenos), o que é bem menos do em que vários  dos livros históricos imensamente mais reconhecidos que já li; um gênero em que não é raro que os anacronismos abundem.

A psicologia dos personagens é complexa; na maioria dos contos o que conduz a história é a própria memória, algum acontecimento distante que definiu o curso da vida do personagem, algo profundo que ele se arrepende. Reina a melancolia. E mesmo o livro tratando de épocas tão distantes no ocidente, nos identificamos com o que lemos. Afinal, são os próprios dilemas do ser humano que são os principais personagens.  

Em relação a linguagem, ela é “clássica”, sem muitas expressões coloquiais. Isso é uma característica, não é um aspecto bom nem ruim em si; mas no livro funciona, pois, afinal, se o autor colocasse expressões brasileiras do dia a dia nessas histórias de tempos tão distantes, penso que isso não seria o mais inteligente.

Considero que um livro, pelo menos em uma boa medida, deve falar por si próprio. A forma como o estilo combina com o conteúdo é essencial; talvez o mais essencial na arte. Por isso, coloco aqui o começo do conto Firmino. De nada serviriam minhas palavras se nenhuma parte da obra aparecesse para dar uma pequena demonstração.


Firmino

Porque fui escravo desde que nasci, porque fui escravo por toda a minha vida, julguei que tinha direito de me defender. Sempre fui escravo, filho de escravos. Será que não se pode lutar contra uma sorte tão injusta? Todos têm direito a seus deuses, todos pertencem a uma cidade, mas eu, a que cidade pertenço? Não estão todos os deuses atados à loucura se pensam que o homem deve seguir seu destino? Devem recomendar isso para os que são livres, pois os que não são possuem apenas um destino: servir. E ser obrigado a ir aonde não se deseja, fazer o que não se deseja, amar a quem não se ama, humilhar-se diante dos que não merecem senão desprezo pela sua vilania. Eu matei, matei, e por isso estou preso em densas trevas, porém, os soldados também não matam? Os guerreiros não matam aqueles que ameaçam suas famílias e suas cidades? Eu matei, mas não tinha família nem cidade para defender, eu e meu corpo são todos os territórios que eu tinha para defender… E, agora, agora me acorrento nas trevas, pois me dizem que tudo o que fiz foi horrível e pavoroso. Apenas me defendi de toda a injustiça que me faziam. Apenas não quis ser escravo. Todos os felizes do mundo têm suas lembranças, memórias de infância, abraços carinhosos de pai e mãe. Eu não.

Leia mais do autor em Sepé.

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *