‘NEO-HUMANO: A SÉTIMA REVOLUÇÃO COGNITIVA DO SAPIENS’, DE LÚCIA SANTAELLA

Por Aguinaldo Medici Severino

Um conhecido aforismo de Wittgenstein propõe que “O que não se pode falar, deve-se calar”. Lembrei várias vezes deste aforismo nas semanas em que estive envolvido em tentar escrever uma resenha digna de “Neo-Humano: a sétima revolução cognitiva do Sapiens”, de Lucia Santaella. Li este livro no ano passado e o assombro com que experimentei com ele acompanhou-me por meses. Todavia, o poderoso conjunto de reflexões da autora sobre o que ela define como a longuíssima travessia do Homo sapiens no espaço e no tempo não me parece poder ser exatamente resumido em uma única resenha, prestando-se melhor ao debate, a conversação, ao diálogo, a troca de experiências de leitura. Apesar deste sentimento, vou tentar aqui provocar o leitor a se aproximar deste bom livro.

A hipótese fundamental do livro afirma que a inteligência do Sapiens segue um processo progressivo de crescimento de complexidade alimentado continuamente por desdobramentos semióticos da linguagem falada e da produção dos meios técnicos que permitem sua transmissão, ou seja, se é que entendi bem, que se a cultura é o meio coletivo e extrassomático de adaptação das mentes humanas individuais, que a evolução da complexidade da mente humana dá-se exatamente na evolução das linguagens. Dito de outra forma, o transporte ou extensão da cognição humana, de nossa psiquê, para o mundo, ou seja, nossa projeção para o espaço natural dá-se por aparatos e/ou tecnologias fundamentadas nas linguagens. Santaella emula uma espécie de “Vidas paralelas”, de Plutarco, vidas paralelas entre o Homo sapiens contemporâneo e algumas de suas prévias existências, as dos Homo sapiens dos momentos de marcante disrupção cognitiva, associados a avanços tecnológicos e sociais.

Após a apresentação, em uma introdução e nos quatro capítulos iniciais, de um conjunto de conceitos chave necessários para a melhor compreensão de seus argumentos (conceitos como cognição,  revolução científica, extrasomatização, disrupção, antropologia evolucionária, teses evolutivas com abordagens biológicas, linguísticas, culturais e semióticas, modernidade, pós-modernidade, oralidade, eras culturais, entre tantas outras), Santaella descreve, nos sete capítulos seguintes, o que ela define como as tais sete revoluções cognitivas do Homo sapiens, que são: a cultura da oralidade; a cultura da escrita; a cultura do livro; a cultura de massas; a cultura das mídias; a cultura do digital e, por fim, a cultura dos dados. Claro, essa aparente esquematização, periodização, classificação excessiva talvez, não torna esses capítulos estanques, compartimentos vedados, que não interagem entre si. Acontece exatamente o contrário. A cada etapa do livro faz-se comentários sobre como as expansões tecnocognitivas do Sapiens progressivamente tornam-se mais e mais complexas, observando aquilo que se ganha, se perde, se acumula, é absorvido, esquecido, rompe-se, eteceteraetal. Nos dois capítulos finais, Santaella trata das consequências sociopsíquicas e ambientais do limiar tecnológico em que estamos, no início do século vinte e um. Ela descreve o estado da arte do que hoje entendemos como inteligência artificial, aprendizado por máquinas, hiperconectividade das expansões da cognição. Ela é menos radical, bem mais vaga e econômica nestes últimos capítulos. Apresenta e faz pontuais reflexões sobre diversos autores que discutem os conceitos de pós-humanidade, transumanismo, neo-humanidade, do desenvolvimento ultra-acelerados da civilização contemporânea.  Nem preciso registrar que o livro inclui dezenas de referência bibliográficas. Apesar de ser bastante técnico, de cobrar esforço do leitor em entender exatamente qual é o ponto principal da narrativa, já que o livro acaba se tornando um mosaico de comentários sobre uma miríade de autores, citações de referências bibliográficas e temas que gravitam o problema da evolução da capacidade humana de se comunicar, o leitor acaba aprendendo um bocado (ao menos é provocado a tentar aprender um bocado).

Termino aqui. Antes gostaria de registrar algo que me incomodou ao reler o livro, quase um ano depois da leitura inicial, quando me dispus a produzir essa resenha. Logo depois que o industrioso Lúcio, editor desta Sepé, convidou-me para produzir esta contribuição para a revista, encontrei por acaso um ex-aluno meu, atualmente professor em uma instituição de ensino superior, de cujo nome não quero lembrar. Pois este ex-aluno meu disse que sua instituição, preocupada com a elevada evasão em todos os cursos que atualmente oferece, e não é necessário ser um especialista em educação para perceber que a evasão em até celebrados cursos como medicina e engenharia já são realidade neste país, começou a discussão sobre o processo de criação de cursos de graduação que eles entendem como mais atraentes, sugerindo enfaticamente que os professores criassem um “curso de inteligência artificial”, vamos chamar assim. Ele reclamou comigo que se a ideia é aproveitar a mesma força de trabalho disponível atualmente, obviamente esse curso já nascerá morto, pois ninguém vinculado à IES sabe de inteligência artificial mais do que se lê nas horas de ócio nas redes sociais. Mas como o dinheiro envolvido é público, ninguém da instituição parece muito preocupado com o natural e programado fracasso da empreitada. O problema de acompanhar temas emergentes, de assuntos que caem no gosto popular, em busca de reconhecimento rápido e/ou dinheiro fácil, é que sem um estudo rigoroso e sistemático nada genuinamente digno será produzido (como meu infeliz ex-aluno já foi capaz de antecipar). Paciência. Temas complexos merecem sim dedicação e diálogo, como o proporcionado por esse livro da Santaella.

E por fim, uma contribuição pessoal, que não se encontra no livro da Santaella, mas que cabe ser aqui acrescentada. Sempre gosto de dizer para meus alunos que a questão das escalas de tempo e espaço é fundamental. Acho complicado comparar e marcar como revoluções coisas que acontecem em escalas de tempo muito diferentes. O gênero Homo existe há um milhão e meio de anos, o Homo sapiens há trezentos mil, já a fala organizada do Homo sapiens deve ter só sessenta mil anos, a escrita não mais de dez mil, o livro impresso há apenas seiscentos anos e, por fim, a cultura de massas, a revolução das mídias analógicas, mídias digitais e de dados são fenômenos de cem, cinquenta, vinte e poucos e cinco anos atrás, respectivamente. “É muito cedo para falar sobre esse assunto”, disse certa vez Deng Xiaoping ao ser perguntado sobre sua opinião acerca da Revolução Francesa: Há temas que merecem reflexão, porém provavelmente não geram dados factuais suficientes que permitam projeções sobre o futuro. Me repito. Nada disto está no livro da Santaella, mas quem afirma (e ela não o faz) que sabe o que será do Homo sapiens no futuro está provavelmente enganado. Se há uma coisa que aprendi em minha formação acadêmica (cabe dizer que sou físico, bacharel em Física) é que a realidade do mundo natural, do mundo físico, reflete em cada momento histórico, exatamente nossa real capacidade de entendê-los. Seremos sempre demasiadamente humanos, pouco importa os atributos que criamos para nós mesmos. Se quando nós vivíamos em uma caverna úmida, iluminada apenas pelas chamas bruxuleantes de uma fogueira a realidade do mundo era alicerçada em deuses e pensamentos mágicos, frutos de nossa engenhosa imaginação, suficiente a ponto de nos manter vivos nos últimos cem ou trezentos mil anos, hoje, somos oito bilhões de indivíduos que não necessariamente precisamos de deuses e pensamentos mágicos para entender porque o céu é azul, como o calor flui de um reservatório quente para um reservatório frio, por que raios um celular funciona, se a entropia sempre aumenta ou não, se existem bilhões de galáxias e bilhões de estrelas, porque o planeta Terra perderá toda sua água daqui um bilhão de anos ou as flores desabrocham sozinhas, etecetera e etecetera e tal, mas continuamos todos com os mesmos vinte e três pares de cromossomos, igualmente curiosos e engenhosos. Certamente um vivente do século vinte e um antes da era comum (nosso atual calendário) e uma vivente do século vinte e um depois da era comum, caso interagissem, se reproduziriam, gerariam novos Homo sapiens tão férteis como nós, entretanto somos indivíduos completamente diferentes. A evolução da linguagem e de todo o aparato tecnológico que criamos nos tornou sim bastante diferentes. Entretanto, acredito que há uma continuidade em nossa espécie, em nossas encarnações históricas, algo perene nestes últimos cem ou trezentos mil anos, que é apenas nossa curiosidade, engenho e nossa fortuita sorte. Tenho lá minhas dúvidas se nós, os Sapiens, vamos durar os cento e cinquenta milhões de anos que duraram os grandes répteis, os dinossauros, mas acredito que os muitos Aguinaldo Severino do século quarenta e um, aqueles que serão os herdeiros dos átomos e elementos, moléculas, fluidos e matéria que hoje tenho aprisionada em meu corpo, continuarão se divertindo, como eu me divirto, neste pequeno planeta junto ao Sol.

Leia mais do autor em Sepé.

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