Por Luciano Prado
De todas as lições possíveis que passam dos pais para os filhos há sempre algo que se destaca. No meu singelo caso a noção de que a leitura de um livro poderia não só enriquecer-me intelectualmente, mas também expandir a minha capacidade de entender e conviver em sociedade, foi aquele tipo de herança guardada com imenso carinho. Da fagulha inicial, claro, um processo autogerido levou-me para traços de personalidade, digamos, alternativos. Passei a devorar um livro após o outro, hábito que sustento orgulhosamente até hoje. Tudo influência advinda de uma mãe súdita de Agatha Christie e Georges Simenon e de um pai cavaleiro fiel de Érico Veríssimo e Daniel Defoe.
Por anos me debati internamente com a questão a respeito da tal literatura séria e com a impressão de que haveria algum motivo para culpa no fato de que Julio Verne e Arthur Conan Doyle instigaram em mim uma espécie de vício em relação aos livros, mas que Kafka e Poe mostraram o quão forte podia ser a experiência de leitura em uma mente fértil e apta para absorver.
Formulei hipóteses, concebi teorias, lembro de ter discutido com meu avô materno (o meu terceiro pilar do mundo literário) a importância de Jonathan Swift e de ter sido por ele veementemente rebatido. Calcado em toda a minha persistência (maldosos chamarão de teimosia) continuei acreditando que os livros, quaisquer livros, poderiam mudar o mundo.
Crença que, por fim, junta todas estas linhas de preâmbulo ao conceito libertador de literatura de entretenimento. Não que concorde com a estratégia de subdivisão em rótulos, é como se um bom filme de aventuras fosse incapaz de trazer prazer e reflexão iguais ou superiores a um filme “sério”. E, no fim das contas, qual seria o mal em se entreter com um livro? Confesso que esta reflexão voltou ao centro de minhas questões literárias quando, após anos vivendo como um leitor contumaz, decidi passar pro lado de lá da cortina e assumir a face escritora que sempre me fascinou. O imbróglio começou quando me dei conta não do tipo de livro que gostava de ler, porque são todos, mas sim do tipo que desejava escrever: os tais livros de entretenimento.
Entra em cena Samir Machado de Machado e seu “O Crime do Bom Nazista”.
A trama acompanha a viagem de um dirigível alemão sobre o território brasileiro na exata época em que os nazistas começavam a botar suas verdadeiras garras para fora. Como um grande representante do estilo detetivesco a obra de Samir deixaria a criadora de Poirot orgulhosa, tenho certeza. Há um grande mistério, daqueles que fazem o leitor elaborar tese em cima de tese conforme avança na leitura. Também existem mortes, ironias e análises sociais pertinentes, tudo muito bem montado para refletir o nazismo da década de 30 de forma infelizmente análoga ao bolsonarismo dos anos pandêmicos. E há muito mais, claro, mas cometerei o sacrilégio de não falar mais da história em si para dar espaço à experiência de ler uma obra destas.
O que acontece é que o livro deve ser mais do que a palavra impressa, isto é óbvio. Particularmente aprecio a leitura desde o primeiro toque na capa. A textura escolhida, a imagem emoldurada, o título paradoxal (existem bons nazistas?). Conforme a leitura flui o dirigível sobrevoa os ares quentes do litoral e é possível sentir a brisa úmida e o cheiro da sopa de tapioca servida para os passageiros. Os diálogos, incômodos tamanha a semelhança com frases que acostumamos a ouvir da boca de familiares, penetram tortos no instante da leitura e fazem justiça à literatura de entretenimento. Porque diverte bastante, mas não faz rir. Surpreende, mas não traumatiza. E só vê nisto uma incongruência quem acha que tudo que entretém é raso. Ou quem nunca leu o Samir.
A arte de entretenimento é uma via de mão única no bom sentido. Não propõe uma discussão ou uma relativização, mas apresenta um fenômeno a ser combatido, seja ele um pirata, um monstro ou um nazista. Todo o maniqueísmo condenável na relação entre as pessoas é saudado neste tipo de literatura porque a força destas histórias está basicamente em denunciar o que há de empecilho para o convívio civilizado entre os pares. Até nisto ela se mostra útil, afinal, se ao término de um livro como o de Samir o leitor ainda achar que é possível relativizar algo como o nazismo e tudo que ele significa só haverá uma conclusão da parte dele para com o escritor: que o autor é um mau artista. E aí, meu caro, restará ler de novo o livro para entender de verdade o que se discutiu ali. Partindo do pressuposto, claro, de que é possível baixar a guarda e entender sem má vontade o que a obra está disposta a mostrar. Parece algo singelo, tão singelo quanto um punhado de folhas contendo uma boa história. A história nos mostra, infelizmente, que esta forma tão simples de manifestação artística vez que outra desperta a ira dos que acreditam terem autoridade para censurar ou usar de um artifício igualmente primitivo (o fogo) no intuito de matar uma ideia. O que, convenhamos, é bem mais difícil do que matar pessoas.
Não tirei toda esta teoria da cartola, evidente. Para ficar em uma metáfora ambientada no universo ficcional de Samir digamos que tais ideias foram como o cavalo encilhado que encontra o cavaleiro a fugir dos vilões. Sensação boa é esta de ver que alguém botou no papel (desculpem a simplificação) tudo o que você pensava e não sabia transmitir. Não é isto que fazem todos os artistas no fim das contas?
Aos que se interessaram pelo que registro aqui recomendo a leitura do artigo de Samir Machado de Machado na edição 204 da Revista Piauí.
Ah, e leiam por favor “O Crime do Bom Nazista”. Nos devaneios que me permito como escritor iniciante às vezes penso no que falaria às pessoas que admiro caso as encontrassem. O coitado do Samir primeiro iria ouvir uma piada infame que ele já deve ter escutado umas duzentas vezes: a de que alguém com dois Machados de sobrenome só poderia ser grande escritor. Após risos diplomáticos o deixaria então a par do quão visionária é sua posição como escritor e o quanto imagino ser vital para a boa literatura a tal vertente do entretenimento.
Vida longa a todos os bons livros dos maus escritores.

