Vol. 2, Nº. 5/2021
Navegue pelo sumário da edição.

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Naquela madrugada, às três horas, Ana mandou me chamar. Com o sono pesado, demorei alguns minutos para entender o barulho, era uma das freiras batendo à minha porta. Abri um tanto irritada, estava frio e úmido, não queria sair da cama, mas era a primeira vez em anos que me acordavam daquela maneira. Imaginei a…
1 ELEGIA DOS DEUSES DO MAR Os deuses que se fizeram silentes adormecidos no mar,eles, que sempre foram embuçados no mais alto etéreo,e sempre estiveram escondidos nesses abismos,os que nunca ouviram as lamentações dos simples, das viúvas,das mulheres abandonadas depois da primeira noite de amor,agora querem que toda a nossa atenção se volte para a…
Leia mais ELEGIAS ESCRITAS NA PANDEMIA, por José Eduardo Degrazia
ORIENTADOR Daí? Todos ligados? Tiveram alguma dificuldade com o Zoom? Fomos obrigados a adaptar a disciplina de escrita criativa, evitando os encontros presenciais. A peste já levou alguns dos nossos melhores escritores, mas, em compensação, poupou todos vocês. Ao menos até agora. Talvez não seja justo. É um vírus insondável. Enfim, aproveitem a chance. Vocês oito…
Apertou o botão do controle remoto, a grade de ferro rangeu, começou a abrir, ela manteve o pé agitado no acelerador, como se os toques leves e contínuos no pedal pudessem acelerar a abertura do portão. Pela janela do quarto não se podia ver nenhum sinal de vida lá dentro de casa. Entrou. Desligou o…
ANGST Sob o sol, deitados sobre toalhas, deitados sobre pedra molhada, assumindo a morosidade, o sumo sonolento da tarde. Corpos de betume, corpos de cinábrio, e, entre eles, figuras de ectoplasma, costas de rebater o branco. Ele olhava a certa distância, nada era muito longe e nada parecia perto, fazia a leitura da cor só…
Num fio I não importa o que eu diga das tuas mãos só posso amá-las como amopelo que não sei dizer amo tuas mãos ali onde elas calam no silêncio que guardam, intacto como o nomede um pássaro não catalogado II da tua boca não importa o que eu diga amo-a porque me escapa a…
Houve um momento em que a noção de sistema literário permitia que a literatura sul-rio-grandense fosse observada, em determinadas perspectivas, com certa autonomia, como se consistisse em certa forma de independência, pela produção de uma literatura específica de autores “daqui”, para uma recepção específica, “daqui”, na constituição de um triângulo “autor-obra-público” gaúcho. Tal independência quase…
O Instituto Estadual do Livro (IEL) está lançando o fascículo biobibliográfico “Escritores Gaúchos – Série Digital: Sergio Faraco”, em homenagem ao escritor Sergio Faraco. Este volume, o sexto da série digital Escritores Gaúchos, conta com relatos, fotos, entrevista e trechos da obra que resgatam a trajetória do autor homenageado. Sergio Faraco nasceu em Alegrete, no…
Recém-formado, cursava o segundo ano de residência em clínica médica. Estava de plantão desde a véspera daquele dezenove de junho de 1985. Madrugada usual, intercorrências de sempre. Houve tempo para olhar a noite se esvaindo sobre a cidade através das janelas da área, então desocupada, que une as alas norte e sul do andar. Lá…
Leia mais UM ÚLTIMO BONDE NA MADRUGADA, por Fernando Neubarth
As velhas sabidas hão de dizer que com o dom da premonição não se permite brincadeira. Os que preferem a justiça terrena defenderão que um homem nascido para a dedicação aos seus apenas descansa no cumprimento de sua sina. Razão qualquer que se dê, porém, acomoda quem ouve pela primeira vez o berredo do prefeito…
A partir do século XVIII tornou-se comum, entre os artistas, a prática de desenhar pessoas encarceradas em asilos; alguns desses desenhos registram loucos desenhando ou traços e figuras nas paredes das celas (Barbosa, 1998). Essas imagens nos mostram que o interesse dos artistas pela loucura encontrou um movimento de seres que, em situações limites, buscaram…
Ópera Verdi com texto de Shakespeare Ópera Verdi com texto de ShakespeareMacBeth (Metropolitan de NY) – 2019Direção de Adrian Noble – condução de Marco ArmiliatoAna Netrebko, como Lady MacBethZeljko Lucic, como MacBethMattev Polenzoni, como MacDuffIIdar Abdrazakov, como Banquo Desde o seu surgimento, na Itália do século XVI, a ópera é uma forma de arte plurimidiática,…
Leia mais MACBETH – UMA TRAGÉDIA OPERÍSTICA, por Maria Alice Braga
Quem conta a história de Grande sertão: veredas, o romance de Guimarães Rosa, é o personagem Riobaldo. Tudo o que saberemos a partir da sua leitura é narrado por ele a um doutor da cidade. É essa narrativa que constrói o personagem e todos os outros. As opções sintáticas e a escolha vocabular que lhe…
Eu sinceramente preferiria ficar em casa lendo. Vai chover a qualquer momento e tenho dor nos ombros, nos joelhos, nos pulsos, nos tornozelos. Nada aparece nos exames que fiz, já me disseram que é depressão, ou fibromialgia. O que quer que seja, sou um barômetro ambulante. Aula, aula, aula. Vamos lá… Oh, céus. Mais uma…
Reflexo Existe só uma opção e o resto está errado.Aquela força frágil de embrião perfeito,nutrido a sangue e cinza em cada ventre-peito,canta: é preciso amar o amor além do amado. Trago meu dote em saco de estopa amarrado.Não vais achar ali mais que incrustado espelhonum coração chagado — mas olha direito:se, quando exposto ao sol,…
EXAGERO Vamos morrendo um a umTanto o próximo quanto o ausenteTodos nos fazem falta Não temos mais o que dizerForça, meus sentimentosVai passar, nada melhor que o tempoFalamos sem certezasA não ser a proximidade da morteQue estava longe e hoje invade o bairro Ir às compras é temerárioNão há mais funerais; velóriosA não ser as…
O primeiro enigma sobre a obra de Marosa di Giorgio (Salto, 1932 – Montevideo, 2004) é o de que não se parece a nenhuma outra: sua escrita, como poucas, cria para si um mundo próprio. Apontada pela crítica como uma das vozes mais originais da lírica latinoamericana e considerada uma escritora de culto no Rio…
Leia mais De ‘LOS PAPELES SALVAJES’ (Marosa di Giorgio), por Giuliana M. Seerig
FU TA SHIH497 – 569 Tenho uma acha na mãoE não a tenho Se caminho, cavalgoum búfalo de água Não há margem se a ponte flui no lugar da correnteza WANG WEI701 – 761 CASA DE CAMPO NO RIO WANG Quase um ano sem voltarà montanha do Leste Já é tempo de semearos grãos da primavera Na…
Eu te amo, cidade,ainda que somente escute o teu rumor longínquo,embora eu seja em teu olvido uma invisível ilha,porque murmuras, tremes e me esquecesEu te amo, cidade. Eu te amo, cidade,nas horas em que a chuva nasce súbita em tua fronteameaçando dissolver teu rosto numeroso,quando até no cristal silente em que residoas estrelas aspergem sua…
Leia mais TESTAMENTO DO PEIXE (Gaston Baquero), por Mariana Machado de Freitas
Fé Eu já me perdi de mim mesmo. Às vezes, tomo as lembranças entre as mãos, com carinho, e busco a infância distante, onde ficaram minha fé e minha força. Eu as vejo ainda lá, detrás de uma intransponível transparência no tempo mostrando com desprezo minha impropriedade de agora e mais admiro a chama tremeluzente…
Leia mais De ‘POEMAS SOLITARIOS’ e ‘POEMAS MISTICOS’ (Ricardo Guiraldes), por Lucio Carvalho
1. De aquele episódio maldito eu lembrava retalhos, fragmentos soltos que minha família soube completar com medo. Eles disseram que Ela tentou me matar e não aceitaram atenuantes. Ela foi extirpada de nossa vida e foi decidido que eu devia odiá-la. Entre o silêncio e os anos, conseguiram esse esquecimento cruel e conveniente, mais confortável…
Leia mais De ‘OS CONTINENTES DE DENTRO’, de María Elena Morán
Sonolento, o ônibus parou no semáforo e a placa na esquina anunciou, indiferente, letras brancas quase apagadas: Rua General Hercílio Neves, emérito lutador da pátria. Nunca tive nenhum tipo de pensamento boiola, este tipo de coisa sensível que os outros vivem esfregando na cara de quem não possui tais dotes, mas, neste instante, pensei em…
RONDÓ DO DESAMPARO (p. 54-56) 1 Este peso de saberque cada hora é derradeiranenhum humano suporta. Teria que assumir um ardemasiadamente gravecomo se fosse parentedos elefantes e nãodas aves, das borboletas. Deus salve a ignorânciasobre o tempo de cada um. 2 Prever rotas do destinoé um risco para humanos,já sabiam bem os gregos. Édipo Rei,…
Leia mais De ‘CARTA ABERTA AO DEMÔNIO’, de Ricardo Silvestrin
Profilaxia Esfrego as mãos até a pelePelando, desfazer seus nósE sabe-me a saibro e sabãoA pasta vencida das horasOs olhos nublados da areiavestígios de lágrima e póTateio nos vincos da faceo rosto antigo que não tenho Por mais que tome cuidadoMe corto todas as manhãsNo gume afiado do dia. Amarcord I Na cidade, vivia o…
um poeta não é capaz de suturaro coração de uma criança as mãos tremerãodeixando buracosvai sangrar o peito maisdo que o protocolo permite um poeta não consertao traumade estar vivo meu corpo vaipassando pelo teuquase sem encostar a peleareia fina em mão etreabertaformigas a ponto de morrerdebaixo de passos humanos na calçada permaneço imóvelpara que…
A pedra Se eu fosse uma pedrapresa a uma parede marítimateria sentido o desejode me soltar e sair correndosem destino, mas contracorrentee também o medode afundar no esquecimentoe também o pesode abandonar um continente. O rio Quisera esfacelar meus ossossem morrere sair pelo mundoarrastando-me, sem pressatoda sangue e biomassaamorosa, pareceque a doçura é líquidae o…
ato falho há um erro de digitaçãofalha frequente nos cartórios da cidadese alguém me chamar por outro nometalvez aconteça caminhar ao contrário existe algo explodindoda cabeça para dentropequenos impulsos forçamo portão de entrada da festado meu inconsciente 2.quero gritar socorro na língua dos sinaisser poeta apenas longe dos outros poetaseu faria qualquer coisa para mastigar…
Leia mais De ‘TODO ABISMO É NAVEGÁVEL A BARQUINHOS DE PAPEL’, de Davi Koteck
NOTURNO DE OLINDA Do alto dessa colina,onde plantaram mais cruzesdo que alguém contar consiga,não vejo o mar, no momento.Perscruto a noite dos tempos,vasto horizonte da história,em busca de vida, de luzes,nem sei se em mim ou lá fora. O passeio dura pouco,mas agrada a companhia.E a paz da noite convidaa partilharmos um sonho. É então…
Nesta edição, conversamos com o escritor Daniel Gruber, que acaba de lançar seu terceiro livro, “A Floresta”. Pela terceira vez ele publica pelo seu selo próprio “O Grifo” e, dessa vez, mergulha num enredo de folk horror ambientado nas pequenas cidades do interior riograndense de colonização germânica no qual medo, violência e bruxaria disputam a…
Leia mais Entrevista com Daniel Gruber, autor de ‘A FLORESTA’
3 – QUASÍMODO Na manhã seguinte, Paris despertou com um estremecimento. “Despertou”, se é que a capital dormia. Aparentemente, nas sombras da cidade-luz, coisas macabras jamais descansavam. A notícia que corria solta tornava o incrível quase concreto e dava contornos ainda mais sinistros ao misterioso vulto noticiado pelos jornais, dias antes. Da Porte Saint-Denis ao…
Leia mais De ‘O JOVEM ARSENE LUPIN E A DANÇA MACABRA’, de Simone Saueressig
POR QUE O’BRIEN PRECISA SOFRER? A resposta para a pergunta do título acima pode ser dada de duas maneiras. Na primeira delas, diremos que não há motivos para O’Brien sofrer, tendo em vista o cara bacana que ele é. Já na segunda, apontaremos que, para um personagem, não basta ser bacana, é preciso conflito, drama…
Leia mais De ‘O’BRIEN DEVE SOFRER’, de Eduardo Pacheco Freitas
A MALDIÇÃO DO MEU TIO A história do meu tio é meio enrolada e já aconteceu faz um tempão. Não ouvi a história direto da sua boca, ele vivia viajando, deforma que fui criado pela minha tia. Nem cheguei a conhecer meus pais que morreram cedo. Mas a história que a minha tia me contou,…
Leia mais De ‘FABRÍCIO BOMTEMPO E AS RELÍQUIAS IMPOSSÍVEIS’, de Christian David
“Você pode muito bem usar cloreto de moscóvium, mas o de fleróvium também resolve. Os efeitos duram menos, mas é um terço do preço…”, o sujeito com cara de fuinha me diz mostrando no seu contrafator as opções que tinha. Eu precisava decidir sem olhar para ele porque, caso olhasse, não me animaria a colocar…
As figueiras na Praia do Laranjal balançam as barbas na serventia urbana de fazer sombra aos carros estacionados. Nem todos que chegam saem para caminhar na calçada ou na areia, basta baixar o vidro e respirar a margem, assim como se faz no Cassino, onde enfileirar automóveis a dezenas de metros das ondas já é…
Claridad Aguillera deu três batidas na porta com os nós dos dedos e esperou. Como ninguém respondesse, segurou a maçaneta com a mão direita e baixou-a com cuidado, para não fazer barulho. De dentro da sala veio uma nuvem quente de fumaça, que logo trespassou a porta, demorando em se desfazer. Ao fundo, no outro…
Teresa estava cansada muito cansada. A casa tinha sido ocupada nos últimos dias e não existia um só lugar que não houvesse sido devassado por visitantes. O ritmo das tosses marcava o compasso das intermináveis horas de espera. Moribundos são assim, tem o espetáculo anunciado, marcham direto para o desfecho, mas adoram saborear o domínio…
201917h05. O sentimento que guardo por Lacônia do Sul sobrevive aos meus remorsos. Tenho voltado cada vez menos. Este ano talvez a última. Parece que um cordão umbilical ainda me liga a cidade. Saio do carro. Bolsa, celular, isqueiro. Acendo um. Opa! Não é que conseguiram manter o parque no centro? Mal cuidado, mas não…
Pouco depois da morte da mãe, participei como palestrante do Seminário Mídia & Deficiência, a convite da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Foi nesse encontro, em 27 de julho de 2011, a minha primeira fala pública sobre nanismo para um auditório praticamente lotado. Kixi e Flavia estavam na plateia. E vê-las ali me…
Leia mais De ‘E FOMOS SER GAUCHE NA VIDA’, de Lelei Teixeira
Nelson Coelho de Castro nasceu em Porto Alegre em 1954 e, primeiramente, morou com sua família no bairro São João, na Rua Honório Silveira Dias. Filho de um representante farmacêutico e de uma dona de casa. Em depoimento dado ao entrevistador Rui Carlos Ostermann e nos livros de Mann (2002) e Faria (2001) – duas…
Leia mais ‘JUNTOS’, O PRIMEIRO DISCO GAÚCHO INDEPENDENTE, por Leticia Morales
Fazia acho que mais de ano que postergava esse momento, seja deixando as frases curtirem por dias, semanas e até meses na mente, porque cada página era uma tempestade de imagens a digerir, ressoar, refletir, viver e voltar a ler, seja com receio de acabar a “novidade” com o livro terminado, esquecendo de que, neste…
Leia mais Sobre ‘ASSIM NA TERRA’ e Luiz Sérgio (Jacaré) Metz, por Leonardo Foletto
Ao longo do oitocentos, as Américas foram palco de profundas transformações socioeconômicas e políticas e os conflitos militares estiveram relacionados a muitas delas. Século marcado pelas independências, pelo surgimento dos Estados nacionais, pela construção das fronteiras e limites territoriais, pela abolição da escravidão africana, pelas reformas liberais que prepararam o continente para a implantação do…
Nos fundos da casa, ficavam os tanques: um de lavar roupas e o tacho de polenta e outro para lavar os pés na volta da roça – no inverno, lavar os pés era o banho do dia a dia; o completo, só no sábado. Atrás dos tanques, eram os dois banheiros, tudo de tábua, as…
O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no pé. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a jararacuçu que se recolhia sobre si mesma; preparava outro ataque. Deu uns passos adiante, mas outra vez sentiu o pé apoiar-se em matéria flácida, indevida. Cruzeiras andam sempre…
(Homenagem a Sergio Faraco) Estava bebendo canha no bolicho do Chico Bugre, um casebre de madeira cuja última mão de tinta deve ter sido dada no tempo das Missiones. Pelo menos assim o descreveu Seu Quintino, que tomava também seus tragos, de pé, junto ao balcão. Quintino estava tão borracho que deu pra falar bonito,…
É tudo pressa, tudo azáfama: e este fende-lhe o peitoum golpe de espada e a ferida fatal lhe devassao abismo profundo; raivosamente o selvagem se virade boca para o chão natal, e morde a terra morrendo De Gestis Men de Saa, de José de Anchieta Vinham os dois a trote. O jovem mais na frente…
1. Abro a janela e coloco a cabeça para fora, sem me importar com a poeira que levanta da estrada de terra vermelha. O mormaço desta tarde de janeiro é tal que piso no acelerador, na expectativa de que um vento um pouco mais forte apazigue as gotas de suor que brotam da fronte e…
Leia mais De ‘MILONGA DE UM PAMPA ESQUECIDO’, de Carlos Guilherme Vogel
Caminho pela cidade vazia. Escolho os horários em que o vazio se acomoda e me ponho a caminhar. No primeiro dia, na verdade uma noite, fazia frio: frio e garoa, em uma segunda-feira, naquela cidade, já espantariam uns tantos; como havia, ainda, algo semelhante a um toque de recolher, o lugar era uma coleção de…
Encontrei um vendedor de bilhetes da loteria federal, bem ali na esquina da rua do Acampamento com a avenida Medianeira. Era sábado de aleluia. Aleluia! A sorte me encontrou. Era o último pedacinho que tinha. O preço de face estava em quatro reais. Ele pedia seis e paguei com uma nota de cinco e uma…
Leia mais O MEU BILHETE PREMIADO, por Athos Ronaldo Miralha da Cunha
ainda somos de osso de carnealguns de alma e como parte num todoa vida continuaparece até funcionar levantamos nossos mortos por sua veznossos mortos apenas elesdescansam já vou quea madrugada me ameaçacom outra manhãcom outra cara e humore gasta esperança Juliana Meira vive em Canela/RS. Publicou, entre outros, água dura (Artes & Ecos, 2019), na…
Helicônia da Costa Rica ao sol Queria lhe falar da elegância das helicônias ao solnão esmorecemcomo são duras as helicôniasdizem que a elegância pesae elas tudo ergueme nada pedem.Sonho em ser uma helicônia, moldada pela evolução aponto de criar em mim mesma os repelentes das pestes,reduzindo a produção do melado, do néctar, até confundiros pássaros…
A caça Animal estranho e entranhantetímido e protervo caminhavai seguindo seu rumo em desaprumoarisco arredio temeráriosuas ações abrem trilhas promovemcontaminações inesperadas. Armadilhas de sentidosartista camaleônico e libertino que em seu obrarse desloca a todo instantepõe-se à escuta de outras vidas vozesque soam uma música longínqua. Intérprete musical? Por que não. Meio masoquistageneroso e curioso, em…
A magia do tempo Tudo alisão lembrançasnossas memóriasmergulhadasuma piscina cheiade horasnão se esvazia Lembra daqueles diasmeus olhosteus olhosnossos olhosjuntos brilhavamno infinito congeladode nossos encontros No Jardin des Planteso corvo de Allan Poee orquídeas selvagensse entrelaçavamdançarinas de veludosobre o gigantescotapete verde e úmidocheiro de cio da manhã Na sala de estardois globosde vidro transparenteságua escorrendocachoeiras vertiamlágrimas…
Animal microscópico sobreviveVinte e quatro mil anos em geleiraDa Rússia;A vida é virtualmente eternaFora do circuito religioso.Isso, confesso, me entusiasma.O texto que segue ficou prejudicadoCom a descoberta –Tenho 77 anos de idade eApenas dois de poesia.Não disponho de muito tempoPara me aprimorar ( essa premissa ruiu ).De qualquer modo, estou presente e ativoNas madrugadas sempre…
Parto Quando você não tiver nada,restará pelo menos a escrita.Foi algo que você prometeu em público,ao vivo:escrever até morrer,morrer se não escrever. Se, por acaso,até escrever for difícil,quando nenhuma ideia lhe ocorrer,nem nova nem velha,abra a garganta e grite.Coloque esse grito no papel.Sei que é só um grito,mas vale mesmo assim.Preferível é gritar a se…
Ressaca Quando teus olhos me entram o corpoE atingem o tumulto dos sonhosRepousando as coisas pequenasQue sussurramosNa cama de lençóis amassados,É ali, nesse lugarQue a palavra nasceIluminando a hora primeiraDe todas as manhãs. Valentine’s O amor comeuo olho direito que eu tinha.Não fiquei cego – de amor,só caolho.Hoje vivoamores pela metade,mas canhotos.antes caolho doque mal…
Poema das crianças O bebê de um ano e onze meses morto a pauladas pelo pai,As dez crianças mortas pelo vigia que ateou fogo na creche,O menino assassinado pela polícia dentro casa com setenta e um tiros disparados a esmo,O garoto estrangulado pela mãe,O garoto empalado pelo homem desconhecido,A menina alvejada pela facção rival do…
presente sem passadopassado a limpoganhei o presentenão há futuro! 20/12/2009 vai-se só o vazioperda do que se não tinhao vazio se esvaiue se vai nele o que havia. 14/11/2009 lua alagadaintrigado ficarabombardeado, um lado da luaalagado restara 13/11/2009 Devires Grandes momentosvirão reviradosde nós mesmos 20/03/2009 Pedaços do coração 3 Atormentadas circunstânciasIndizíveis deslembrançasInda revoltam as benquerências…
Para uma melhor leitura, selecione a imagem desejada e clique em “visualizar a imagem no tamanho original”. Dinarte Albuquerque Filho, jornalista (UCS) e mestre em Letras (UFRGS). Autor de Fissura no asfalto (2019), Leituras na madrugada (2014), Leminski, o “samurai-malandro” (2009) e Um olhar sobre a cidade e outros olhares (1995). Tem poemas gravados pelo…
Leia mais De ‘FISSURA NO ASFALTO’ de Dinarte Albuquerque Filho
1. não posso acreditarestar esta poesia de sentençahaverá quem a leiaapenas para elevá-la à forcahaverá quem a leiapor morar em praça públicaonde é o espetáculo mal sabia que parirde útero invertido causassetanta dor que do péde flor só brotasse espinhosatemporal urticáriaa semente extrai nasciment-os germes do tempo haverá quem a leiapara sepultá-la nas falésiashaverá quem…
Leia mais De ‘ININTERRUPTOS, CHOREMOS RUAS DENTRO DOS OSSOS’, de Delalves Costa
A arquitetura como construir portas,de abrir; ou como construir o aberto;contruir, não como ilhar e prender,nem contruir como fechar secretos;contruir portas abertas, em portas;casas exclusivamente portas e teto(…)Fábula de um arquiteto – João Cabral de Melo Neto Os primeiros passos eram amplidão branca e deslumbrante que se explodia em luminosidade e acabava por dilatar as…
Pena os crisântemos serem tingidos de azul. Manchavam as mãozinhas, tinta sob as unhas por semanas. Que bobagem essa a de pintar flores. Emporcalhavam a boneca e o único vestidinho possível. Gostava mesmo era de correr sol de sábado entre os jazigos familiares. Perdia-se nas histórias de gárgulas e anjos. Portas de ferro, castelos e…
Leia mais PHALAENOPSIS OU ORQUÍDEA BORBOLETA, por Carolina Panta
Tu serás sempre o menino encantador que sonhava com o campo de semente. Na estranha tarde em que morreste, depois de todos os limites entre dores e morfina, depois dos dias de esperança (nós e o beija-flor visitante), e madrugadas em vigília (nós e as corujas da esquina), naquela tarde colorida e fria voltei para…
“Nem tudo que brilha é relíquia nem joia”Racionais MCs – Eu sou 157 Dois, um e meio, dois e meio, será? Diôni tentava calcular de cabeça, para se distrair, quanto custavam os carros estacionados em frente ao beach club California Nation. Até então, um Maserati, um Porsche – não desses mais baratos, de setecentos mil,…
Sou pardo, mais pra branco, embora tive um avô negro e uma avó indígena. Tenho um filho mulato, um irmão negro e, como todo branco gosta de dizer, tenho amigos negros e isso já parece ser um álibi antirracismo. No seminário – acreditem, estudei para ser padre – nunca tive um colega negro. Na faculdade…
“Caro Josias, espero que esta o encontre saudável e forte, tal como você sempre foi. Por aqui uns dias modorrentos me confundem o juízo. Já nem sei mais se tento retê-los na memória ou se o melhor seria entregar-me ao embalar das horas. O silêncio é o parceiro de jornada, o que possibilita que ainda…
Como numa música do Kleiton e Kledir, um turista pegava o ônibus na sexta de tarde e ia pra Porto Alegre. Se instalava no hotel Uruguai (duas estrelas apagadas), onde havia uma sacadinha no quarto e um interruptor que acionava a Rádio Farroupilha. Aí um turista fumava um cigarro, olhando a rua melequenta e os…