PASSAGEM PARA A ÍNDIA NO BOM FIM, por Cátia Simon

Conto publicado em A arca de desejos por Porto Alegre
– org. por Cátia Castilho Simon e Liana Timm.
Porto Alegre: Território das Artes, 2022.

Escolheram a dedo o filme, todo mundo comentava que era imperdível e passava no cinema do Bom fim, podiam ir a pé mesmo em cima da hora. Mal fecharam a porta e o telefone tocou. Olharam-se e comentaram que devia ser o pessoal da reunião que dali a pouco iniciava. Já haviam decidido que não iam e seguiram em frente. Da Felipe Camarão até a Oswaldo era um pulo e andaram rápido. Entraram no Baltimore quando as luzes já estavam apagadas, mas em tempo de ver o início do filme e de se livrarem do Canal 100. Para elas o jornal que antecedia todos os filmes tinha apenas um único propósito – alienar sempre e cada vez mais o povo brasileiro de sua realidade – na manjada política do pão e circo. Sorriram ao perceberem que a ficha técnica do dito programa estava sendo exibida. Chegaram atrasadas e escolheram um lugar próximo à entrada para não atrapalharem os que haviam chegado antes, já acomodados. Em tudo procuravam o equilíbrio entre a teoria e a prática, com ênfase na práxis como boas materialistas que eram.

Antes de irem para a sala, pegaram a pipoca – não abriam mão daquele pequeno luxo– e trocaram ideias sobre o Congresso do Partido que aconteceria dali a uns dias. Comentaram sobre seus namorados, também camaradas da militância, que estavam trabalhando no fim de semana. Elas até acharam bom, assim ficavam mais à vontade para conversarem. Tinham decidido pelo cinema, declinaram de participar de mais outra reunião de ânimos acirrados.

O filme Passagem para a Índia exibia um país dos anos 20, do século passado. O enredo estava centrado em duas mulheres: Sra Moore e Adella, futuras sogra e nora. Elas fizeram a viagem para encontrar Ronni, o elo que as unia. A fotografia era bonita e a história mostrava os contrastes culturais entre oriente e ocidente. O sentimento de superioridade dos colonizadores era gritante. “Nada que latino-americanos já não tivessem experimentado”, cochicharam entre si as amigas. Uma delas lembrou que dali uns dias teriam o piquete em frente à garagem de ônibus da zona norte, pois a greve geral tinha de acontecer. Era o início da abertura política e estavam convencidas de que o protagonismo dos trabalhadores deveria ser consolidado.

Na história, Adella e a Sra Moore queriam ver a Índia de verdade, não aquela artificial preparada para recebê-las. “A Índia não é uma colônia de férias, nós estamos aqui para fazer justiça e garantir a paz”, contrapunha Ronni, que era o magistrado na localidade. Com o objetivo de integrá-las, o rapaz as levou ao clube onde lhes seriam dadas as boas-vindas. Cansada da recepção, a velha senhora foi tomar um ar fora do salão e lá conheceu um jovem médico local e viúvo, Aziz, que aguardava alguém. Surge entre eles imediata empatia, e o rapaz é convidado a entrar. Ele agradece e diz da impossibilidade, uma vez que o clube não permitia a presença de indianos.

O filme estava prometendo, podia-se ler no olhar atento das moças e do pequeno público do entorno. “Um dia quero ir à Índia, cochichou uma delas, me encanta esse ar de mistério, sem falar na figura de Gandhi”, complementou. “Pois eu não, até acho bonito no filme, mas quero mesmo é ficar pelo Brasil e conhecer cada pedacinho daqui”.“Não se trata de querer, mas parece que alguma coisa me chama para essas coisas e lugares esfíngicos”. “Ah, que baita comunista estás te revelando” – disse rindo a outra. E complementou em tom irônico – “só falta abandonar a faculdade e o namorado na véspera da formatura para viver uma aventura da irracionalidade”.

Como são crédulos, pensou logo a seguir, a moça. Imagina se vou perder meu tempo acreditando em sina e reencarnação. Fosse assim, nunca teria feito a metade do que fiz na vida. Teria ficado cuidando dos três irmãos menores e sendo pajem da família. “Não importa o que faça, o destino não pode ser evitado”, disse Godbole à Sra Moore quando ela decide partir. Só fico até o final do filme em consideração à minha amiga e ao dinheiro que gastei, e estica-se na cadeira estofada da plateia procurando desinstalar o incômodo que se alargava enquanto o filme avançava.

À medida que a convivência entre os futuros noivos aumentava as incompatibilidades tomavam proporções quase incontornáveis, principalmente para Adella. Ronni, na tentativa de reverter a situação e agradá-la, concordou que ela e a mãe visitassem as Cavernas de Marabar sob a guarda do professor Fielding, o inglês que garantia a idoneidade do encontro. O grupo seria ciceroneado por Aziz, que retribuiria os atos gentis da nova amiga, a Sra Moore. A relação de proximidade entre ingleses e indianos não era bem vista por nenhum dos lados. Todos aguardavam sempre um mau desfecho, e vaticinavam. Os indianos davam o prazo máximo de dois anos para que o inglês mostrasse a verdadeira face e de seis meses para que a mulher inglesa o fizesse. “Nunca que eu ficaria com um burguês alienado desses. É certo que às escondidas bem que ele se aproveita das nativas”. “Talvez, mas o filme não mostra evidências disso”. “Já viu sem-vergonha ter cara de sem-vergonha? – como diz meu pai – comentou por fim a moça segura de sua sabedoria da vida prática. Ambas concordaram e silenciaram.

Fielding e Godbole chegam atrasados para pegarem o trem que os levaria com a comitiva até Marabar. O professor decide ainda assim ir até o lugar combinado, dá adeus ao amigo que se curva à fatalidade.

Ecos misteriosos desestruturaram a Sra Moore e depois, Adella. Na primeira visita a uma das cavernas, muitas pessoas entraram causando alvoroço. A senhora passa mal e desiste de seguir adiante, libera a moça e o médico para irem mais acima no monte. Fielding chega no exato momento em que a jovem, desorientada, saía de uma das cavernas onde havia entrado sozinha. Na descida desatinada da montanha ela encontra o carro dos amigos ingleses, embarcando machucada e em estado de choque.

Daí em diante, abre-se um processo de tentativa de estupro contra Aziz, levando-o a julgamento. O caso serve para reforçar a impossibilidade de amizade entre oriente e ocidente e, acima de tudo, mantê-los distantes. “A ingenuidade dos indianos é quase vexatória, como foram confiar na inglesa recém-chegada e ainda noiva do talzinho inglês? Eu, por exemplo, só depois de dois anos posso dizer que confio no meu namorado. E ainda só porque somos do mesmo partido e sonhamos uma sociedade melhor do que esta que vivemos.” “Pois eu não afirmo nada e nem confio totalmente. A natureza humana é permeada de contradições e obscuridades” – diz a outra, finalizando a conversa.

Enquanto a tela era preenchida pelo drama do médico indiano, as amigas percorriam o fio lógico com o qual escrutinavam aquelas relações. Apenas uma delas deixava em aberto possibilidades que escapavam ao previsível.

A Sra Moore vai embora da Índia antes do veredicto. Na partida, ouve do amigo enigmático que não importa o que faça, o desígnio se cumprirá. A senhora passa mal e morre durante a noite na viagem de navio. A cena do rápido ritual fúnebre é iluminada pela lua e seu reflexo no mar, em meio às borbulhas do corpo que submerge.

Enquanto isso, Adella volta atrás no julgamento e inocenta o médico dizendo ter se confundido em meio ao clima místico que atribuíam à montanha e suas cavernas. Ela é abandonada pelo noivo e os compatriotas no encerramento da sessão. Fielding, que sempre acreditou na inocência de Aziz, acolheu a moça e fez com que retornasse ao país de origem em segurança. “Ah não, tinha de ser o mocinho branco para dar guarida à indefesa heroína. Aposto que ficarão juntos”, sussurrou uma delas. “É, acho que vou ter de concordar contigo dessa vez”, respondeu a outra. “Ainda bem que essa palhaçada está chegando ao fim. Não fosse a fotografia do filme, diria que rasgamos dinheiro hoje”. “Bah, esse teu comentário não pode ser mais capitalista, hein”? E ficaram quietas após ouvirem um shhhhhhhhh atrás delas.

O médico vai embora da cidade com muita mágoa dos que acreditaram na denúncia contra ele. Algum tempo depois, o rapaz é encontrado por Fielding para lhe contar que havia casado. Ele reluta em ouvir o antigo amigo antecipando que nunca perdoará Adella pela humilhação que passou. O inglês lhe diz que não foi com ela que casou e apresenta a filha da Sra Moore, Stella, como esposa. Aziz se emociona, concluindo que tudo aconteceu para que o casal tivesse se encontrado.

“Então tá, pensei que não podia ficar pior, mas ficou, assim como na política, sempre pode piorar. O pobre coitado foi preso, espezinhado para que o casalzinho colonizador se encontrasse e fosse feliz para sempre? Putaquepariu. Merda de concepção de vida essa”.

As luzes acenderam antes que a outra amiga contestasse. Ia começar a ponderar sobre acaso e fatalidade e virou-se para trás em gesto automático a fim de conferir se havia muita gente na sala para sair. “Não olha agora, espera um pouco, mas antes respira porque ainda não estou acreditando no que vi”. “O que foi”, perguntou a outra, voltando-se para onde havia sido alertada. Lá estava o seu namorado com a colega de faculdade. Bem aquela que havia intuído certo clima entre os dois. “Mas ele não deveria estar trabalhando hoje?”– inquiriu a amiga, sem saber direito o que falar naquele momento. A moça voltou-se mais uma vez para eles, e nenhum foi capaz de sustentar o olhar. “Deveríamos ter ido à reunião do partido e deixado o cinema para amanhã”, comenta ainda em solidariedade, tentando amenizar a situação. “Mas voltar para casa depois desta é que não vou”, disse resoluta a ultrajada. E continuou: “Ainda podemos dar uma passada ali na Engenharia, a festa deles é bem animada e sempre vai até o dia amanhecer, topa”

Levantaram-se com a pressa de buscar um novo propósito. Com o rabo do olho, uma delas os viu e lhe pareceu que submergiram sob as luzes amarelas que indicavam a saída.

Cátia Castilho Simon é doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Livros individuais: Labirintos da Realidade – diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis. POA: Redes editora, 2013 – Prêmio Vianna Moog, 2014 (ensaio) UBE/RJ.Por que ler Clarice Lispector (ensaio) Coleção minibuk, TDA (Território das Artes), 2017. Rastro de estrelas (contos), POA: TDA, 2022. Não há oásis no deserto (poesia) – Ed Venas Abiertas, BH, 2023 (no prelo). Integra o Mulherio das Letras/RS; vice-presidente cultural da AGES – gestão 2023/2024.

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