‘PONCIÁ VICÊNCIO’, DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Por Nelson Rego

Em 2023, comemorou-se o aniversário de vinte anos de Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. A primeira edição foi bancada pela própria autora, oriunda da favela, em Belo Horizonte, empregada doméstica que se formou normalista no ensino médio aos 25 anos – professora na rede municipal em Niterói e mestre em literatura pela PUC-Rio, na época da publicação do livro; depois, doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense e professora na PUC-Rio, na Universidade Estadual da Bahia, na Universidade Federal de Minas Gerais, na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, no Middlebury College. Da chegada pelas bordas nas livrarias ao que hoje se tornou, Ponciá Vicêncio se fez marco da literatura que gira o peso do tempo e do espaço que estão do “lado de fora” em tempo e espaço narrativos, se faz movimento entre as lembranças da vida e o recriar da vida pela escrita.  

Em 2003, Conceição Evaristo publicou sua escrita das vidas dos Vicêncio situadas num tempo ainda próximo da pós-abolição. Com poesia e contundência, ela expôs e perguntou, ao Brasil, o quanto, no início do século 21, estávamos ainda fincados na passagem do 19 para o 20. As opressões em que as vidas de Ponciá e de sua família Vicêncio foram assentadas, aliás, abafadas, um século antes, não permaneciam tempo presente?  De 2003 para 2023, a pergunta perdeu atualidade?  

O país, em muito, mudou. Talvez a principal mudança seja a do grito: agora, negros gritam mais forte contra a estrutura social que explora ao extremo o trabalho realizado pela base populacional e, a essa mesma base, recusa acessos à escolaridade, à saúde, à aposentadoria, à moradia, à segurança. Outra mudança é que o antes camuflado “país da paz” agora se revelou: muita gente se escancarou fascista e racista. País da inércia nada inerte em manter omitido que “sangue e garapa podiam ser um líquido só” e que o pior do passado insiste em manter-se presente.

Ponciá Vicêncio não é sobre a luta pela dignidade no viver, o texto de Conceição Evaristo é a dignidade. Parafraseando Caetano, digo de Ponciá: onde me queres calada, sou a inteligência. Onde me queres raivosa, sou quem te compreende. Onde me queres amarrada, sou quem desacomoda. Onde me queres má imagem de violência, sou quem pergunta, sem a minha indignação, haverá liberdade, igualdade, fraternidade?

Quando o trem foi diminuindo a marcha e parou na plataforma, Ponciá Vicêncio apertou contra o peito a pequena trouxa que carregara no colo durante a viagem inteira.

Em 2003, a Universidade Estadual da Bahia e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro foram pioneiras na adoção de cotas para estudantes – e Ponciá desembarcava em livro e na estação de trem na cidade grande, vinda do interior e da herança escravocrata que continuava e continua presente. Nesses vinte anos, as cotas pintaram com outras cores a antes quase que somente branca universidade brasileira, e continuam a acontecer desembarques na estação: novos sentidos são construídos para o antigo “dar nó no pingo d’água”, pelos que resistem a tudo que empurra para a evasão quem entra no nível superior do ensino. De lá para cá, aos poucos e não sem tramas de roteiros costurados por muitos todo dia, os saberes estão a reconhecer necessários outros saberes, como esses de Conceição Evaristo, que chegou para ficar.  

Não divisou um rosto conhecido, experimentou um profundo pesar, embora soubesse de antemão que não havia ninguém esperando por ela.

O conceito de escrevivência foi se formando para Evaristo em seu tempo de ativismo no movimento negro e nas ações culturais do Quilombhoje. A escrevivência manifesta-se, em Evaristo, como experiência coletiva inclusa no indivíduo e urgência de fabular as vidas que serão empurradas para fora da vida se não forem contadas, se não realizarem a construção de si e dos seus ao se contarem e se fazerem presenças com o seu modo de ser humanidade. Isso implica em não deixar que seja omitido o essencial: as circunstâncias de vida desde o nascimento são abismos da desigualdade. É vazia a afirmação da vida e da humanidade como princípios sem afirmar a justiça distributiva. É de pés quebrados a democracia que deixe sempre para depois escutar as vozes que inventam o mundo enfim sem a tortura das opressões étnicas e de gênero. Com a linguagem, Conceição/Ponciá (se) refaz (n)a vida.

Agradeço ao Lucio Carvalho pelo convite a escrever um convite à leitura.

Leia mais do autor em Sepé.

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