O verso penumbra que já foi um universo foi ouvido pelo poeta
no silêncio das ruínas quando visitou as Missões no outono de 1985.
O poema, escrito lentamente nos meses seguintes,
seria incluído em seu segundo livro, “Águas Siladas”,
editado pela Movimento em 1992.
𝘌𝘯𝘵𝘳𝘦 𝘦𝘴𝘵𝘢𝘴 𝘱𝘦𝘥𝘳𝘢𝘴, 𝘯𝘢𝘴 𝘦𝘴𝘤𝘶𝘳𝘢𝘴 𝘧𝘦𝘯𝘥𝘢𝘴
𝘢𝘭𝘨𝘰 𝘴𝘶𝘮𝘪𝘶 𝘮𝘢𝘪𝘰𝘳 𝘲𝘶𝘦 𝘢 𝘙𝘦𝘢𝘭𝘦𝘻𝘢:
𝘋𝘦𝘶𝘴, 𝘶𝘮 𝘗𝘰𝘷𝘰 𝘦𝘯𝘷𝘰𝘭𝘵𝘰 𝘦𝘮 𝘣𝘳𝘶𝘮𝘢𝘴 𝘦 𝘭𝘦𝘯𝘥𝘢𝘴
1
Deponho sal nas bordas do meu verso
sandálias descalcei para adentrar-te
penumbra que já foi um universo
Piso silêncios de clavas e Cruz
de Templos, Tabas, Roques e Nheçus
Aqui não sinto a paz de porcelana
adita aos deuses; não, sente-se apenas
o vácuo imenso da presença humana
Naves sombrias, desertas de santos
nichos sem domos, capitéis sem fustes
nos frisos decepados dos acantos
Nem chamas nos sacrários
nem passos nos altares!
2
Do índio, mártir do oficio, onde o vestígio?
Bruniu os plintos das colunas dóricas
o tramo gravou do arabesco frígio?
Toscas estátuas de cara espanholas
caíram tristes dos buris cansados
de esculpirem o manto das estolas
3
Em que granito frio sacrificava
índio? Altar não, porque em altar se sabe
só o grande Deus dos brancos escutava
Tupã foi sempre um Deus do descampado
poentes mágicos, luar, sóis bizarros
em claustros não vivia confinado
4
Como o vento amanhado a viração
em cada Povo, um êxodo lateja
Tupã sabia. O Deus dos brancos, não?
5
Um dia a paz trocou-se dos arados
e colheitas sem dízimos, feitores
pela paz das espadas, nos Tratados
A terra, então, não quis seu novo dono
rasgou as vestes, imolou seus filhos
preferindo-lhes a morte ao abandono
Haviam compreendido que de joelhos
só chegariam prófugos e escravos
do outro lado daquele Mar Vermelho
E as itaiças tingiram-se de sangue
até que os últimos morubixabas
lança na mão, fossem tombando exangues
Sepé cobriu-se com a noite Guarani
6.
Céu antigo pendendo dos beirais
a recortar abóbadas azuis
indiferente ao coro dos pardais
7
Depus o sal nas bordas do meu verso
sandálias descalcei para adentrar-te
penumbra que já foi um Universo
8
O pó da História levo nas retinas
e a sensação também de fazer parte
de que modo não sei, destas ruínas
Getúlio Ellwanger Neves (1929-2015), foi um médico-cirurgião e que teve seus quatro livros publicados entre 1985 e 2010. Sua Poesia Completa foi publicada em 2022 pela TAN editorial.


