UM QUASE ENCONTRO COM MÁRIO QUINTANA, por Eduardo Battaglia Krause

Casualmente hoje, 05 de maio, quando terminei de escrever esta crônica, descobri que faz 29 anos que Mário Quintana nos deixou. Já se falou tudo dele. Do jeito que ele amava Bruna Lombardi, acho que ela o amava mais, das tiradas pontuais e extemporâneas. De suas manias, enfim. Nem tanto, ele é um espaço temporal de luz, brilho e poesia.

Foi lá pelos anos 80/90, vou contar como me lembro, pois é como me lembro que vale. Eu ainda não tinha escrito “A Vaca Nua” (não deixem de ler), mas já havia lido tudo o que ele escrevera até então. O texto dele me tocava de uma forma que eu não sei explicar, sentia apenas. Sonhava conversar com ele num bar, conversar não, ouvir, assim como quem não quer nada. Sou bom em ouvir e observar pois, em muitos momentos uma certa timidez toma conta de mim e me deixa sem ação. Foi assim.

A Feira do Livro estava por abrir em um ou dois dias. As barracas se esprequiçavam, martelos, pregos e serrotes silenciavam os passarinhos da Praça da Alfandega. Era esperada a hora do toque do sino, comandada pelo Patrono daquela festa, que por uma semana nos inunda de literatura e arte.

Não era muito de me sentar em banco de praça. Alguma coisa me colocou ali naquela hora, naquele final da manhã, de frio, vento e sol, próprio da estação do nosso Rio Grande que já desaprendeu o que é isso.

O banco era de frente pro Clube do Comércio, o antigo Cinema Imperial e o Guarany, não vou pesquisar a ordem, senão perco o fio da meada. Entre nós, a larga calçada ladrilhada por onde os Portoalegrenses passavam em caminhadas ora apressadas, ora nem tanto. De repente, tenho quase certeza que ele vinha dos lados da Ladeira (esquina com a Rua da Praia, a tal de Andradas) na direção, suponho, do Correio do Povo, na Rua Caldas Junior, onde trabalhava em forma de poesia.

Pois é, ele vinha apressado numa caminhada forte. Num braço o guarda chuva que balançava com o vento e teimava em não cair, no outro, um maço de papel, talvez uma velha caderneta, instrumento, acredito, inseparável. Fiquei a imaginar que importantes escritos iam ali sem nenhuma proteção, guardados apenas pelo que saia aos borbotões de sua cabeça com taquicardia prá vida. Aquele corpo encurvado e franzino era vestido por uma calça velha de lã, diria,talvez, que um dia foi cinza. Os sapatos, passo doble ou vulcabrás, quem conheceu sabe, se encontravam com a bainha da calça, no caminho meias, não lembro a cor, mas certamente descombinando. Usava uma camisa branca, o colarinho e as mangas nem tanto. Seu agasalho era um casaco quadriculado, cujas cores se mesclavam. Completava um chapéu de feltro com aba, de velho. Tenho um, também sou. Estava sem óculos, mas um pitaco de cigarro, acho que acesso estava colado no canto da boca.

Mário Quintana. Era ele mesmo, ali a poucos metros e vindo na minha direção. Bendita hora em que o banco da praça se ofereceu prá mim, e que eu, despretensiosamente e premonitoriamente resolvi sentar.

Mário Quintana em pessoa. Naqueles poucos segundos preparei o que ia dizer, uma frase, um bom dia, um como vai, um leio tudo que escreves, um…

Mário Quintana em pessoa. Exatamente como pensei, sem o bar, menos importante. Ele veio na minha direção, não mudou o rumo. Cheguei a olhar procurando ler os olhos dele, o que ia naquela cabeça efervescente, naquele raro momento histórico.

Mário Quintana em pessoa. Íamos falar. Talvez ele sentasse ao meu lado, o banco estava vazio, conversaríamos até sobre extraterrestres, também sobre a lua, poesia, palavras curtas, qualquer coisa era bom, digo ótimo, quero dizer excelente, mais, inesquecível.

Mário Quintana em pessoa. Preparei prá levantar e dizer qualquer coisa, quem sabe saísse uma frase agradável, perspicaz, inteligente,…

Então colei no banco e simplesmente não consegui levantar, minha boca secou e fiquei mudo.

Mário Quintana passou por mim e eu não falei com ele, não abanei, nada, fiquei estaqueado.

Ele não parou, seguiu o rumo dos seus cantos e encantos, prá lá não sei onde. Apenas, tal qual a paradinha consagrada pelo Pelé, olhou de soslaio e me presenteou com um leve sorriso que quase deixou cair o cigarro. Desligado como era, talvez o sorriso fosse prá uma poesia ou um texto que vinha escrevendo enquanto caminhava. Recebi como se fosse prá mim.

Ele se foi e eu fiquei. Ele um poeta inalcansável e eu um incauto qualquer. Guardo até hoje, uma grande quase conversa que nunca houve, mas carregada de um sentimento de alegria que não sei expressar.

Mário Quintana passou por mim. Tenho certeza que nos falamos. Entenda quem quiser.

Eduardo Battaglia Krause é advogado especialista em direito administrativo e escritor . Tem 6 livros publicados, 3 sobre direito administrativo e o cenário da regulação no Brasil, 1 de Crônicas, A Vaca Nua, em que foi agraciado com  o Prêmio Açorianos 2000. No prelo, com previsão em setembro, mais um.

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *