AS MÃOS RÚSPIGAS
as mãos rúspigas
nas bordas do café com leite
o cabelo encaracolado e cinzento
farelo de pão que voa
quando a porta abre
e ela abre muitas vezes
um chaveiro que é a cabeça
de um mergulhador
botes anônimos sumidos no mar marrom
como corpos
a piscadela do garçom
e ele pisca muitas vezes
dezenas de garrafas de Branca
perfiladas na sacada
Pancho Chévez Capitán Beto
no se adelante
o el sentinela abrira fuego
alfajor matambre e bino
as mãos rúspigas
as abas de temporal
na direção de Salta
um detetive fantasma
que abre as portas
e elas abrem muitas vezes
um fidéo, uma lágrima
uma da tarde em Neuquén
Selva Almada em Villa Elisa
e o menino Cenair em Oberá
Pablo y Marcelo
pibes y flacos y libres
com giniebra
e camisetas de metal em contrabando
quando abre a porta do trem
em Yapeyú
e vamos por linhas
que já não se encontram mais

NEUQUÉN
não fui amigo daquele tipo
mas bem que queria
no entanto ele parecia
ser de outro mundo
não do meu
recoberto da poeira
que um dia mais outro
fornecem de lambuja ao nada
ele no entanto
não sabia minha língua
ou a traduzia mal
no reflexo dos olhos
e no palpitar sombrio dos dentes
o meu mundo
mal tocado
pela falsa labareda
que assovia ao fim do dia
como um sagui prenhe de medo
ou cheio de ranhuras assinadas
em segredo
no tampo da mesa velha
onde um vampiro há mil anos
escalavrou um nome
ou um símbolo
não fui amigo daquele tipo
não dei com ele nas ruas
nem nos parques
que se sucedem
sem motivo e sem paixão
nem em janela alguma
passando
numa fumaça
que se atrapalha
não fui amigo daquele tipo
não o vi no caixa de uma farmácia
nem lhe entreguei a folha morna
com cheiro de carne
a que chamam dinheiro
não é dele um chapéu improvisado
que repousa no balcão
nem é dele o casaco verde ou a blusa rosa
não é dele o anel de caveira dentro do cinzeiro
ou a marca de água que um copo exara
sobre uma banqueta
na salinha
de um boteco em Neuquén
não fui amigo
mas bem que queria
tomar-lhe emprestado
o jeito de gastar o tênis
e o modo de quebrar os clipes
para ofertá-los ao deus
detrás da escrivaninha
no entanto ele parecia assim
uma espécie de alegria
já perdida no trocar dos dias
e no fugir das noites
ele parecia mesmo correr
como um velocista
na pista mais errada
que é de terra e pasto
e pedras adiadas
que enfim se encravam
ele parecia
o vampiro
uma dessas pedras adiadas
que enfim se encravam
em planetas de arrabalde

O QUE PENSO QUANDO CORTO OS CABELOS
{Para Iuri Müller}
no dia em que fomos ver Bob Dylan
na cancha do Velez
no bairro de Liniers
na cidade autônoma de Buenos Aires
(o ano do senhor era 2008
fomos conduzidos pelo célebre
Jamil e Uma Noites
que havia posto a tocar Nat King Cole
no ônibus em nossa chegada
eu padecia de horríveis cólicas intestinais
decorrentes de um abuso de
Quilmes e bifes de chorizo
e de uísque comprado em Passo Fundo
e sorvido durante a viagem
afinal era de dia de festa
dia de amor dia de Dylan
e rodovias imensas e cidades fantasmas
na madrugada da bacia do Prata
afinal era dia de glória e de loucura
e de celebração religiosa e de amizades instantâneas
e de bottoms nas jaquetas
mas isso não vem tanto ao caso)
no dia em que fomos ver Bob Dylan
havia uma profusão de pequenos bob dylans em fila
e uma multidão de camisetas deste senhor
em marcha na grande avenida
que levava o nome do homem de ciência
que dava nome àquele imenso glaciar
Perito Moreno
vinda de outro lado da avenida
mais perto do rio lanoso e marrom
que não é rio
mas vinda da mesma grande avenida
a mesma que irá vazar com outro nome
quase à beira do Rio de La Matanza
uma triste multidão se movia
rude e confusa
egressa do estádio do San Lorenzo
time que por ódio
os milicos expulsaram de Boedo
os azulgranas
então misturados
aos seus rivais em branco-e-azul do Velez
todos atônitos alarmados desolados abombados
como se diz
iam então se encontrar
todos eles
com nossa pequena multidão de dylans ignorantes
que éramos então da tragédia
que já havia ocorrido
que já estava nas cabeças daqueles torcedores
os azulgranas e os fortineros
e os à paisana e os sem-camisa
que já estava no ar que soprava do mar
do mar lanoso e marrom
como uma grande ovelha suja
enovelada e circunvoluta
deitada às margens do Prata
e a mensagem que soprava do mar
era a de que
não com essas palavras, nem com esses nomes
nem com o que os periódicos iriam colorir e legendar
não com a imensa tristeza que ainda haveria de se abater
mais uma vez e mais outra vez
sobre a cidade
a mensagem que soprava do mar
mais uma vez e mais outra vez
era a de que Emanuel Alvarez fora morto
e que Marcelo Javier Aliandre
era seu assassino
e que a partida sequer começaria
e jamais seria jogada
Marco de Menezes nasceu em Uruguaiana (RS) e vive em Caxias do Sul (RS). É autor dos livros de poemas As horas dragas (1999), Pés de aragem (2007), Fim das coisas velhas (2009, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nas categorias Poesia e Livro do Ano 2010), Ode paranoide (2010), Pequena madrugada antes da meia-noite (2016) e Como se constrói uma melancolia de domingo (2018). Foi editor do selo Modelo de Nuvem e atua como médico do SUS.

