4 poemas de Almir Zarfeg

Os quatro poemas acima compõem o livro inédito Poemia,
que deverá ser publicado em breve.

À LA GODARD

Nosso pai está morto da silva e velado
bem encenado e infartado do miocárdio

Dizia vou ali e volto já, palavra de José e
o bicho homi desaparecia no vasto vale

Retornava uma semana depois com seu
cinismo em 1º plano e roteiro de segunda

O pássaro branco passava rente à nossa
casinha de barro bufando zoeira e zás

E necas do safado que, de novo, havia
trocado o lá doce lá por um rabo de saia

Assim nos matava, a um tempo, de raiva
e saudade tecidas com sol e solidão

Na zona rural doce ficava amargo e
amar-o ganhava gostinho de amor-a

E quando a esperança parecia ter sido
devorada pela serpente do vaivém

Lambida pelo boi da cara preta ou rimada
pelo bacurau tratante, ele surgia pé ante pé

Vencera o rio Umburana com o braço
direito como um valente Luís Vaz

Com o canhoto, patético, salvara o pacote
de pães de sal made in Itanhém:

Voltei! dizia caprichando na cena de
caretas: era seu jump cut preferido

JANEIRO BRANCO

Nosso tio tinha um parafuso a menos na oficina do
Diabo – dizia a ave (Maria) de mau agouro
Por isso era muito diferente de todo mundo:
Ora era uma árvore que fixava suas raízes na
Imensidão e deixava estar, inerte, sonolento e indolor
Ora ressurgia feito andarilho afoito e ansioso:
Pronto para pegar a onda e partir sem olhar para trás
Às vezes era um pombo-correio atualizando
Seu diário de bordo:
Estou vagando entre o zás e o zen neste rincão de
Minas Gerais

Por vezes, dizia-se peixe-boi quando, em rigor,
Era um ensimesmado embriagado das águas do
Rio Umburana

Nunca mais tivemos notícias do seu paradeiro:
Barbacena
Pasárgada
Água Preta?

Pobre Xavier! Não lamentava a sorte, as pedradas
Nem o excesso de lirismo! Abandonado pelos seus
Pela lucidez (tinha luz própria) e pelo girassol

Outro dia tivemos um encontro marcado e presumido
Com o saudoso tio: era uma nuvem de bermuda –
Quase sensual – dando adeusinho pela última vez.

AMO, MAS NÃO ADMIRO VOCÊ

Você é capaz de chorar meio milhão de vítimas
Mandar beijos pro mito e chegar ao delírio facim.
Assistir ao pôr do sol e, depois, vagar como uma
Lua negacionista repetindo ave-marias e chavões
Doar-se nas intermináveis transfusões de suco de
Uva morte vida severina nas partys clandestinas
Você me ama sem saber (é capaz de me negar 3x)
Meu desejo nietzschiano às ocultas: sair de finim!
Para sempre, meu verso é uma mistura de voo
Rasante, passatempo cego e miopia sentimental
Para sempre, você inspira amabilidade suspeita.
Amo você (doce incógnita apontada para mim)!

RECEITA

A vírgula é muito maior que o
vírus

que é muito maior que o
ego

que é muito maior que o
bigode

que é muito maior que o
bípede

que é muito maior que o
vaivém

que, confinado, se excita e
vir-gula

Almir Zarfeg é autor de livros em verso e prosa. Iniciou-se na literatura em 1991 com a obra poética “Água Preta” (Lura Editorial, 2021), atualmente na 5ª edição. “A primeira vez de Z.” (Clube de Autores, 2009) é sua primeira incursão na prosa. Participa de instituições literárias dentro e fora do país, como União Brasileira de Escritores (UBE-RJ), Academia de Letras do Brasil (ALB) e Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Portugal (NALAP). É presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL). Seu nome consta do “Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia” e da “Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos”. Em 2017, recebeu o título de “Personalidade de Importância Cultural”, concedido pela União Baiana de Escritores (UBESC).

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