A primeira água é o corpo (fragmento)
Natalie Diaz
O rio é minha irmã – eu sou sua filha.
Ele é minhas mãos quando dele bebo,
meu próprio olho quando choro,
e meu desejo quando ardo como um sino de mandioca
na noite. O rio diz, Abre tua boca para mim,
e eu te farei mais.
Porque até um rio pode ser solitário,
até um rio pode morrer de sede.
Eu sou ambos – o rio e a que contém o rio.
Ele me mapeia aluvião. Uma rede de peixes da cor da lua.
Passei por ele como fio de cobre.
(Natalie Diaz nasceu na California. Ela é do povo Mojave.)
Fonte: Postcolonial Love Poem (Graywolf Press, 2020)

Comissão do Vale do Tennessee
Isabel Duarte-Gray
O barco cadáver dividiu os lírios
em uma fita preta e arfante
em um último dia na terra.
Este lago não é lago do jeito que um deus
molda lagos com garras de gelo.
Um homem vivo se lembra quando este buraco
não era um lugar de muitas águas, mas
uma cidade afogada em apenas um dia.
Sob os lírios você não vê
os telhados onde os tentilhões faziam ninho
para semear grama de ponta e filhotes.
Havia noivas feitas neste lugar
onde as garças varrem os cantos.
Gatos do lodo se reproduzem aqui agora seus bigodes conhecedores
se enraizaram. Casa a única coisa a fazer raiz aqui
nestas salas que não podemos salvar.
Isabel Duarte-Gray, “Tennessee Valley Authority” from Even Shorn.
Copyright © 2021 by Isabel Duarte-Gray. Reprinted by permission of Sarabande Books, Inc..
Fonte: Even Shorn (Sarabande Books, Inc., 2021)
https://www.poetryfoundation.org/poems/156607/tennesse-valley-authority

Esclarecimento
Natasha Tretheway
No retrato de Jefferson pendurado
em Monticello, ele é representado em dois tons:
sua testa, branca com a luz —
uma lâmpada acesa – o resto de seu rosto na sombra,
escurecido como se o artista pretendesse contrastar
seu conhecimento brilhante, seu subtexto obscuro.
Em 1805, quando Jefferson sentou-se para o retrato,
ele já tinha um caso
com sua escrava. Contra um pano de fundo azul
e etéreo, uma camada de tinta que parece
dar-lhe alívio, Jefferson mira
através dos séculos, seus lábios fixos como se
acabasse de proferir uma palavra final.
A primeira vez que vi a pintura, escutei
meu pai explicar as contradições:
como Jefferson odiava a escravidão, no entanto –
por necessidade, meu pai disse – tinha que possuir
escravos; que sua filosofia moral significava
que não poderia ter gerado aqueles filhos:
teria sido impossível, meu pai disse.
Durante anos debatemos a distância entre
palavra e ação. Eu seguiria meu pai de livro
a livro, reunindo citações, ouvindo-o
nomear – como um guia de campo para a Virgínia –
cada flor e árvore e pássaro como se para provar
que a busca de conhecimento de um homem é maior
do que suas falhas, os limites de sua visão.
Eu não sabia então o subtexto
da nossa história, que meu pai pudesse imaginar
as palavras de Jefferson feitas carne na minha carne –
a melhora dos negros no corpo
e mente, na primeira instância de sua mistura
com os brancos – ou que meu pai pudesse acreditar
que ele me fez melhor. Quando penso nisso agora,
vejo como o passado nos mantém cativos,
sua bela ruína gravada no olho da mente:
meu jovem pai, um esboço do velho
que se tornou, precisava me mostrar
a melhor medida de seu coração, uma equação
grande em Monticello. Isso foi anos atrás.
Agora, vejamos o quanto mudou:
fala-se de Sally Hemings, alguém pergunta,
Quão branca ela era? – analisando as frações
como se para nomear o que a fez digna
das atenções de Jefferson: uma quase branca,
amante três quartos branca, não uma simples escrava negra.
Imagine voltar ao passado,
nosso guia nos diz então – e não posso resistir
sussurro para meu pai: Aqui é onde
nós nos separamos. Vou dar a volta pelos fundos.
Quando ele ri, sei que é grato
Fiz uma piada dessa história
que nos liga — pai branco, filha negra —
mesmo que isso nos torne o outro um para o outro.
Fonte: Thrall (Houghton Mifflin Harcourt, 2012)
https://www.poetryfoundation.org/poems/57697/enlightenment-56d23b7175cc0

A hora
Margaret Atwood
A hora em que, depois de muitos anos
de trabalho duro e uma longa viagem
paras no centro de teu quarto,
casa, meio acre, milha quadrada, ilha, país,
sabendo por fim como lá chegaste,
e dizes, isto me pertence,
é a mesma hora em que as árvores desabraçam
os braços macios que te envolviam,
os pássaros reclamam a sua linguagem,
os penhascos racham e desmoronam,
o ar sai de ti como uma onda
e não podes respirar.
Não, eles sussurram. Nada disso é teu.
Foste sempre um visitante, a cada vez
escalando a colina, plantando a bandeira, proclamando.
Nunca te pertencemos.
Nunca foste tu a nos achar.
Sempre foi ao contrário.
Malu Baumgarten é de Porto Alegre, vive em Toronto, Canadá. Jornalista, estudante, curiosa. Está nas coletâneas O mundo ao redor (Bestiário) e Solilóquios (Venas Abiertas) com trabalhos de ficção, e nas antologias poética do selo Enluaradas, Uma ciranda de deusas e I tomo das bruxas. Tem presença online no site bilingue Lumiar (www.urubuquaqua.com), onde apresenta seus trabalhos de escritora, fotógrafa e tradutora e no Nós e Outras (www.noseoutras.com). Publica seu primeiro livro em 2023, pelo selo Invencionática, da editora Bestiário. Está trabalhando num projeto de tradução de poetas brasileiras e canadenses.

