MULHER CHAMADA ADÉLIA
Meu consolo é que a mulher chamada Adélia
fazia bainha nas calças, como eu
e ia à missa, como eu não faço mais.
E depois a mulher chamada Adélia
sentava na varanda e na calçada
com seus compadres a descascar laranjas.
De noite pegava o bastidor
e lá ficava a bordar
e invocava Maria e outras santas.
Minha vizinha, Dona Eusébia,
nas tardes de domingo é quem me aconselhava,
já que Adélia estava longe,
a levantar cedo, rezar muito
e a não deitar mais com o moço cafajeste
que me fazia tremer.
Mulher chamada Adélia lá do seu interior
queria só me ver feliz com seus escritos,
mas a gente teima e faz bobagem,
escolhe vivente maldito e renegado.
Procuro a mulher chamada Adélia
que só me abrirá os braços, compreendendo
e me dirá que tudo vale a vida
que tudo é travessia.
Para Adélia Prado

Esta carga na arca
No baú dos sentimentos
te oprime ou te alivia?
E tentas caminhar no fio da navalha
de onde serás soprada, derrubada.
Que é que te restou?
Alguns grãos de alegria
escondidos no corpo
que alguém te deixou.
Mas se tentas saber quem foi
a resposta se esfuma no passado
e traz só a tua face
(sempre estarás a sós.)

SEM AMANHÃ
A gente sempre soube
que não haveria amanhã.
Muito passado
não dá lugar a um futuro
Se a gente
apenas pudesse flutuar no tempo…
Sim, uma noite me deitei nas águas
e podia me deixar levar
de tão completa me sentia.
Um dia andei na chuva acompanhada
e vi vagalumes acendendo um campo escuro.
Um dia caminhei por entre flores
e tudo era só renascimento.
Prefiro agora assim não te nomear.
Sempre soube que não haveria amanhã
E mesmo assim o insistente amor nos prega peças
E mesmo assim corremos tantos riscos!
Sim, não tivemos Paris,
Mas sempre se pode escrever.

FAUSTO/RIOBALDO
Alquimiza agora
o horror que te ofertaram
numa bandeja sangrenta
e aprende então:
nem tudo se pode ser
nem tudo se pode saber.
Recolhe os restos da pedra preciosa
para a qual estavas cego
quando te foste por caminhos sem perdão.
Quiseste alcançar o inominável.
.Tu sabes o que acontece quando se desce ao Hades?
O pacto que farias
custaria apenas a tua alma…
Mas no meio da rua
no meio do redemoinho
o vento do tempo te leva pra longe e te salva
e descobres que não há demônios.

DIADORIM
Mil faces num só instante
de um diamante lascado
com minúsculos pedaços
e milhares de reflexos
num prisma feito de ar
entre a neblina esgarçada
era bruma e às vezes luz
basta um instante
e tudo volta ao começo
tudo gira e assim rebrilha
no espaço de seu negror
era pedra-de-safira
de topázio e de ametista
também guardada no peito
foram pra longe os pedaços
mas ficaram estilhaços
da história que não tem fim
e se ninguém mais te conhece
se névoa rima com treva
abismo se funde em ti.
Lígia Savio nasceu em Porto Alegre. Participou de Antologias independentes na década de 70 ( Teia e Teia Il, edit. Lume). Publicou seu primeiro livro individual de poemas – No Dorso da Palavra – em 2015 e o segundo, Fios de Aço, em 2019. Teve vários poemas publicados nas Antologias do coletivo Mulherio das Letras.

