Os quatro poemas acima compõem o livro inédito Poemia,
que deverá ser publicado em breve.
À LA GODARD
Nosso pai está morto da silva e velado
bem encenado e infartado do miocárdio
Dizia vou ali e volto já, palavra de José e
o bicho homi desaparecia no vasto vale
Retornava uma semana depois com seu
cinismo em 1º plano e roteiro de segunda
O pássaro branco passava rente à nossa
casinha de barro bufando zoeira e zás
E necas do safado que, de novo, havia
trocado o lá doce lá por um rabo de saia
Assim nos matava, a um tempo, de raiva
e saudade tecidas com sol e solidão
Na zona rural doce ficava amargo e
amar-o ganhava gostinho de amor-a
E quando a esperança parecia ter sido
devorada pela serpente do vaivém
Lambida pelo boi da cara preta ou rimada
pelo bacurau tratante, ele surgia pé ante pé
Vencera o rio Umburana com o braço
direito como um valente Luís Vaz
Com o canhoto, patético, salvara o pacote
de pães de sal made in Itanhém:
Voltei! dizia caprichando na cena de
caretas: era seu jump cut preferido

JANEIRO BRANCO
Nosso tio tinha um parafuso a menos na oficina do
Diabo – dizia a ave (Maria) de mau agouro
Por isso era muito diferente de todo mundo:
Ora era uma árvore que fixava suas raízes na
Imensidão e deixava estar, inerte, sonolento e indolor
Ora ressurgia feito andarilho afoito e ansioso:
Pronto para pegar a onda e partir sem olhar para trás
Às vezes era um pombo-correio atualizando
Seu diário de bordo:
Estou vagando entre o zás e o zen neste rincão de
Minas Gerais
Por vezes, dizia-se peixe-boi quando, em rigor,
Era um ensimesmado embriagado das águas do
Rio Umburana
Nunca mais tivemos notícias do seu paradeiro:
Barbacena
Pasárgada
Água Preta?
Pobre Xavier! Não lamentava a sorte, as pedradas
Nem o excesso de lirismo! Abandonado pelos seus
Pela lucidez (tinha luz própria) e pelo girassol
Outro dia tivemos um encontro marcado e presumido
Com o saudoso tio: era uma nuvem de bermuda –
Quase sensual – dando adeusinho pela última vez.

AMO, MAS NÃO ADMIRO VOCÊ
Você é capaz de chorar meio milhão de vítimas
Mandar beijos pro mito e chegar ao delírio facim.
Assistir ao pôr do sol e, depois, vagar como uma
Lua negacionista repetindo ave-marias e chavões
Doar-se nas intermináveis transfusões de suco de
Uva morte vida severina nas partys clandestinas
Você me ama sem saber (é capaz de me negar 3x)
Meu desejo nietzschiano às ocultas: sair de finim!
Para sempre, meu verso é uma mistura de voo
Rasante, passatempo cego e miopia sentimental
Para sempre, você inspira amabilidade suspeita.
Amo você (doce incógnita apontada para mim)!

RECEITA
A vírgula é muito maior que o
vírus
que é muito maior que o
ego
que é muito maior que o
bigode
que é muito maior que o
bípede
que é muito maior que o
vaivém
que, confinado, se excita e
vir-gula
Almir Zarfeg é autor de livros em verso e prosa. Iniciou-se na literatura em 1991 com a obra poética “Água Preta” (Lura Editorial, 2021), atualmente na 5ª edição. “A primeira vez de Z.” (Clube de Autores, 2009) é sua primeira incursão na prosa. Participa de instituições literárias dentro e fora do país, como União Brasileira de Escritores (UBE-RJ), Academia de Letras do Brasil (ALB) e Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Portugal (NALAP). É presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL). Seu nome consta do “Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia” e da “Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos”. Em 2017, recebeu o título de “Personalidade de Importância Cultural”, concedido pela União Baiana de Escritores (UBESC).


Parabéns pelo seu talento digno de honra!Excelente!