O PERCURSO DO GRITO, por Jorge Rein

Em se tratando de seres de imaginação mediana, escassa ou até nula, torna-se imprescindível a existência de um tema inspirador e catalítico que, para abreviar, chamaremos de motivo ou de causa.

Suponhamos, por exemplo, um cavalo esvaindo-se em sangue, mansamente deitado sobre a areia úmida de uma praia deserta numa manhã de inverno.

Tão importante quanto o motivo deve considerar-se a presença do sujeito passivo-ativo da experiência, que é, ao mesmo, tempo, observador e intermediário. Para tais fins pode nos ser de alguma serventia o concurso da senhorita Aurélia, levando em conta que, apesar de não ser possuidora de qualquer qualidade extraordinária, é o melhor que se pode arranjar na vizinhança de uma praia no inverno, fora eventuais equinos hemorrágicos. Além do mais, justiça seja feita, a senhorita Aurélia (apenas Aurélia daqui em diante) pertence àquela categoria de indivíduos que padecem de uma vocação irremediável para o exercício das manifestações ostensivas de uma piedade mal direcionada.

Aurélia acorda. Pouco depois, levanta. Assim parece fácil, mas o intervalo entre essas duas ações obedece a um intrincado ritual que não reproduzimos por ser irrelevante, além de incompreensível para quem não compartilha a mesma condição cinquentenária de teimosa virtude celibata. Então, abre a janela e, finalmente, o enxerga. Também não é assim tão simples. A modelagem da percepção perpassa diversas estações consecutivas que, por pressa ou por hábito, criam em nossos cérebros a ilusão de serem simultâneas. A saber:

  • Aurélia < > dia pouco apropriado para uma caminhada à beira-mar (nestes casos, por mais estranho que possa parecer, o produto final ou conclusivo precede a análise discriminada dos fatores, provável consequência do condicionamento da percepção humana ao método global).
  • Aurélia < > céu nublado (um meteorologista poderia ser mais específico neste particular; não é o caso de Aurélia).
  • Aurélia < > mar proceloso (furtou o belo adjetivo da leitura da Ilíada e passou a frequentá-lo como se fosse seu).
  • Aurélia < > mancha rubra na areia.
  • Mancha rubra na areia = cavalo mais vermelho que vivo.

Ao nível da retina, o impacto desta última imagem se esmera em provocar violentas vibrações que levam à ruptura de um número indefinido de cápsulas portadoras de licor lacrimal. Considerando que Aurélia (ou, simplesmente, A.) cultiva entre algodões a fragílima graça da comiseração, é provável que o volume do fluído liberado supere a capacidade de escoamento dos canais competentes (lacrimais), derramando o excesso no seu próprio interior. É o estímulo que basta para iniciar a ação dos íntimos mecanismos de defesa, cuja única função é a de proteger o organismo dos óbvios malefícios decorrentes da corrosão causada por soluções salinas. Surge, assim, uma corrente de diminutos guarda-chuvas de tecidos e nervos, um para cada ponto vulnerável à oxidação. Ao serem desfraldados, alguns dos guarda-chuvas acabam encostando, ainda que de leve, na rede neuronal da coitada de A. O contato urticante, por sua vez, comanda uma agressiva contração gastrovascular, particularmente dolorosa quando atinge o estômago em jejum (e este é o caso de A.). O processo, que até esta fase observa um rumo descendente, muda abruptamente de sentido logo após o tremelique dos joelhos, como se fosse adepto da podofobia. Na urgência de encontrar uma via de fuga, não acha melhor recurso que o de aproveitar a elasticidade das cordas vocais, que usa à guisa de trampolim, pulando decididamente sobre as pregas antes de se lançar a conhecer o mundo que existe além de Aurélia. Então Aurélia grita. Brevemente. Sua solidão na casa não justifica um grito prolongado. Nada além de um par de vogais conjugadas, um mísero ditongo acompanhado de uma ligeira distorção no ritmo respiratório. A. costuma emitir os seus gritos em si bemol, mas essa peculiaridade não apresenta, no caso, a menor importância.

A partir desse instante o grito já não é mais exclusivo de Aurélia. Ele passa a fazer parte do patrimônio sonoro comum da humanidade. É notório que o grito é quase tão contagioso quanto o riso ou o bocejo. É até previsível que, alguns dias mais tarde, A. volte a participar daquele mesmo grito, desta vez liberado, tão logo ela escancara a boca do envelope, pela alegre missiva portadora das notícias de B., sua prima-irmã, esforçada turista inaugurando a temporada de caça na Alemanha. Mas é pouco provável que A. ainda se lembre da agonia em vermelho do cavalo e que não acabe achando simplesmente indecente aquele grito proferido por B. enquanto narra, impudica na descrição dos pormenores, carnais vicissitudes da sua conquista mais recente, capturada entre bandeiras, teares e tratores na feira anual de Leipzig.

Jorge Rein é contista e poeta, além de dramaturgo.

  1. Releio divertida e um tanto perplexa a história de Aurélia e do cavalo morto. Jorge Rein manuseia suas invenções em narrativas irônicas, perturbadoras e originais, e a elas acrescenta aqueles toques inesperados e essenciais à toda boa estória curta!

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *