O DIA EM QUE DESCI O MORRO, por Vera Ione Molina

Sentinela acordou, tomou água fazendo aquele barulho que soava como uma pessoa nadando no riacho. Minha mãe passava a colher na panela e virava os restos do almoço na tigela dele. Comeu balançando o rabo e correu para a porta da rua. Ele sabia que eu precisava ir em direção às luzes da cidade. A vista noturna parecia um filme, e eu queria fazer parte dele, ou chegar tão perto da tela quanto possível.

Caneta, caderno, tênis calçados, garrafinha com água, saí de casa e mais uma vez olhei o movimento lá longe. Sentinela corria à minha frente e voltava para andar ao meu lado.

O professor de História passou por mim, meio sem fôlego da subida, mas me cumprimentou com um sorrisão de surpresa. Perguntou para onde eu estava indo. “Não vou a nenhum lugar especial, só dar umas voltas pela vila”, tive o cuidado de tranquilizá-lo.

A visão daquele par de tênis confortável, comprado com o dinheiro que ganhei com o trabalho na tipografia da escola, levou-me até  um dia há três ou quatro anos, quando chegou um caminhão da prefeitura e foram descarregadas centenas de pares de tênis, parecidos com chuteira, para cada menino e menina das escolas construídas pelo prefeito. Todos nós, pés de chinelo, passamos a andar calçados. Lá em casa, em torno do rádio, escutamos o discurso do prefeito: “É um absurdo que os animais do nosso país sejam mais bem-tratados que nossas crianças. Nunca vi no Brasil um bezerro abandonado, nem cavalo sem ferradura no casco. Toda criança pobre tem que ter, no mínimo, o direito a um sapato no pé”. Aí vieram as críticas nas rádios e nos jornais, dos que não gostavam dele, dizendo que o Brizola era o prefeito dos ‘pés-de-chinelo’, ofendendo a todos nós, das vilas, dos morros.

Meu par de tênis-chuteira tinha trava, eu haveria de usá-lo na próxima pelada do campinho. Foi o que pensei naquela época, e me imaginei entrando num estádio lotado, a torcida gritando Eduardo, Eduardo… e eu, craque de um time grande.

Lá pelos doze anos, soube que nunca seria um jogador famoso. Ainda bem que comecei a descobrir outras coisas nos livros que os professores da escola me indicavam e eu conseguia na biblioteca. Já estava na metade da descida do morro. Meu cachorro continuava cheirando as plantas do caminho, dando corridinhas e latidos, perseguindo sabe-se lá o quê, mas sempre voltava para lamber minha mão desocupada.

A menina da tipografia, com seu jeito de moça, estava em pé no portão da casa dela. A luz que vinha da sala me ajudava a ver a pose que deixava mais acentuada a cintura fina dela, mostrava o contorno dos seios redondos, umas maçãzinhas, e os olhos espertos olhando para mim, me reconhecendo.

Ela me cumprimentou: “Boa noite, Edu. Tudo bem?” Está me confundindo com outro, me decepcionei. Mas não, ela disse: “Até amanhã, na tipografia”. Ela viu que era eu, apesar de estar escurecendo. Por que tinha me dado aquele apelido? Meu nome era Eduardo, todos me chamavam assim. Fiquei com vergonha, mas respondi. Ainda bem que consegui dizer: “Tudo bem, e tu?”, a voz sumida e a vergonha de não ter alguma frase inteligente para acrescentar. Mas que gostei de ser chamado de Edu, ah, isso gostei.

Ela mexeu nos cabelos, como se os penteasse e voltou-se para a porta da casa, por onde entrou, quase desfilando como uma artista de novela. Sabia que eu estava olhando, pensei. E decidi seguir minha caminhada. Ia de novo até o Estádio Beira Rio. Já durava três anos a obra e parecia estar apenas iniciando. Que idade teria a menina? Ou moça? Teria uns três anos mais que eu? Ela teve um namorado que estava quase terminando o científico em uma escola da avenida Bento Gonçalves. A obra do Beira Rio iniciara em 1959, eu tinha 9 anos, recém tinha começado a frequentar a escola. Foi lá que ouvi falar sobre o novo estádio.

Andamos quilômetros. Eu parava, anotava tudo que via de novo ou bonito ou interessante. Sempre buscando alguma coisa que não conhecia. Era a segunda vez que conseguíamos chegar na obra. Dois operários já me conheciam: “Lá vem o fiscal”, gritou um deles. Mas era de brincadeira e ele mesmo me mostrou tudo que tinham feito nas duas semanas. Outro me perguntou se era trabalho pra escola, me ofereceu café e a sede e fome eram tão grandes que aceitei. E aquele que tinha cara de zangado se chegou e me chamou de repórter. “Que é isso”?, perguntei. “É um jornalista que vai buscar a notícia onde ela acontece”, explicou, como se fosse um professor. E perguntou se eu queria ver o projeto. Daí mostrou desenhos, anotações, previsões. Contou que a obra ia demorar muitos anos pra ser concluída. E eu anotava, copiava os desenhos, perguntava. E pensava: repórter, essa é boa.

Foi então que tive a ideia de fazer um cartaz explicando desde o projeto, até o início da construção, nome do presidente do clube, alguma coisa que contivesse tudo o quê havia sido concluído até a data. Aquele cartaz iria para uma parede da escola, se os professores de Educação Física e Língua Portuguesa pedissem autorização à diretoria.

Dona Ilda, minha mãe, que era boa em recortar figuras de revistas e jornais que eu trazia na camionete de mudança do meu avô, seria peça fundamental na confecção do cartaz de repórter.

Lá na obra, perguntaram meu nome e eu disse: “Edu, Edu Silveira”, quase como num filme americano que assisti num cinema do Centro com os colegas e duas professoras. Não quis dizer primeiro o sobrenome porque eles podiam me achar muito exibido e não me contarem mais tudo que acontecia lá, no time e na diretoria.

Aquele que eu achava com cara de brabo, que sabia tudo da obra, andava numa camionete, eu e meu cachorro já estávamos voltando para casa e ele me ofereceu carona. Sentinela foi acomodado na carroceria e eu sentado na cabine com o engenheiro, que ia até perto da PUC, morava por lá, me poupava uma boa caminhada e no caminho me contaria muitas histórias interessantes, dessas que sempre ensinam alguma coisa.

Contou que existiam jornalistas que não tinham curso universitário, mas era mais garantido entrar na faculdade porque já se partia de um outro patamar e eu era inteligente, tinha que fazer um esforço, quem sabe um dia eu conseguia até entrar numa universidade pública. Falou que eu tinha que ler muito e aproveitar as oportunidades que os professores me davam na tipografia e na biblioteca. Perguntou se eu tinha aula de Inglês, quando tivesse, procurasse aprender bastante. Ia precisar até para o vestibular, fora as oportunidades de trabalho. Puxa, ia contar tudo pra minha mãe, pro pai, pro vô, pras minhas irmãs que já estavam mais adiantadas na escola.

Nos dias que se seguiram a esse encontro, procurei ler jornais e revistas de uma forma diferente, tentando entender como as matérias eram feitas. Se o repórter só podia falar do que conhecia bem, seria quase impossível para mim, guri criado no morro. Li uma entrevista de um jornalista famoso e ele contava que não, na sua profissão sempre se partia do zero, como se não conhecesse nada sobre o assunto que ia falar ou escrever. Estudava-se muito para poder escrever a matéria.

Quando o meu cartaz foi exposto, a menina da tipografia veio me cumprimentar. Disse que além de tudo, eu tinha talento. Tudo o quê? O que será que ela queria dizer? Acabei entendendo quando ela veio pedir para eu ajudar na revisão de uma revista. Passávamos horas lendo, ela encostada em mim, o rosto próximo, os cabelos roçando os meus braços. Nossas pernas se tocavam e eu tendo estremecimentos. Ela me elogiava, me chamava de inteligente, dizia que um dia eu ia ser importante. Eu perguntava como ela sabia. Ela dizia que tinha certeza. Me achava inteligente, curioso, um guri com muita força de vontade.

No sábado, ela me avisou que íamos fazer hora-extra, tinha dito para o tipógrafo que nosso trabalho estava atrasado. A escola vazia, a porta fechada, ela tocou meu corpo e me ensinou coisas que eu imaginava, mas ainda não tinha posto em prática. Fiquei dias a fio meio pateta, só pensava no momento que ela poria a mão na minha coxa.

No dia que ela faltou ao trabalho, voltei pra casa na maior tristeza, pensava que ela tinha cansado de mim, já tinha outro mais bonito, mais inteligente e menos pobre. Eu sentia vergonha da minha pobreza. Sabia que ela conhecia gente que tinha casa boa, automóvel, alguns amigos que faziam até curso de inglês. Chegou um bilhete: “Estuda, Edu, todos os momentos que tu tiver livres. Continua descendo o morro e te misturando com as luzes da cidade. Tu nasceu pra brilhar. Um dia vou ser uma dona de casa, uma senhora gorda, talvez, e tu um homem de sucesso, famoso. Torço por ti. Meu namorado voltou e me pediu em noivado. O sucesso vai estar sempre no teu caminho, teus olhos cor de mel sempre vão procurar o que há de mais importante e isso vai fazer de ti um homem famoso e lindo”.

Sabia que os elogios eram para poder terminar o namoro apimentado sem culpa, mas as palavras dela me empurraram pra frente e criei coragem para consultar mais os professores. Consegui bolsa para curso de inglês, e nesses ambientes conheci pessoas de boa situação financeira, que gostavam de estudar comigo. Eles me emprestavam livros, revistas, discos. E eu perguntava tudo que não sabia. A cada assunto que puxava, partia do zero.

Eu era sempre o que ganhava carona, o que era convidado para o lanche, até roupas as mães dos amigos me davam de presente. Eu fazia um esforço muito grande para parecer que estava à vontade, mas me achava diferente dos outros. Diferente para menos. Reunia forças enquanto aprendia com meu avô, quando andávamos trabalhando com a camionete dele, ele, que era um trovador, criava uma narrativa pra tudo que via. E ia cantando e descrevendo as cenas que encontrávamos pelo caminho. E dizia também o pensamento dele sobre o que estava acontecendo.

Um tio, irmão do meu pai, tinha um escritório de representação comercial. Pedi pra trabalhar com ele. Deixou e disse que eu levava jeito. Quando me dei conta, estava ganhando dinheiro para minhas despesas. E continuava estudando.

Mas minha vida não era só trabalhar e ir à escola. Ia também ao curso de inglês e lá tinha amigos e amigas, além daqueles que já conhecia antes. Eles sempre me convidavam para estudar junto, tinham todos os livros, tinham dicionários e os pais e mães para nos tirarem dúvidas.

Eu namorava as meninas riquinhas, mas pra superar o problema de não levá-las na minha casa, resolvi virar hippie. Era mais fácil me vestir de hippie e pôr em prática a filosofia do desapego às coisas materiais. Assim, tive cabelos compridos e morei numa comunidade com vários amigos e amigas.

Vestia camisa e ajeitava os cabelos num boné para visitar os clientes. Passei a ter registro de representante comercial e fiz isso por muitos anos, durante todo o tempo que cursei a universidade.

Fui convidado para trabalhar num dos jornais mais importantes, um dos principais jornais de Porto Alegre. E devo ter feito tudo muito bem, porque sempre elogiavam minhas entrevistas, minhas matérias, os buracos que eu tapava.

Representante comercial, jornalista, estudante universitário. Parece que o tempo rendia mais quando eu era jovem. Além das obrigações, sobrava tempo para namorar, sair com amigos e conversar muito com a minha família.

Quando me formei, sempre consegui os empregos que os melhores jornalistas queriam.

Nunca deixei de pensar que aquela minha primeira namorada que me deu o apelido de Edu, o engenheiro do Gigante do Beira Rio, os amigos que me convidavam para estudar nas suas casas, o meu avô com suas narrativas em forma de trova, o meu tio que me ajudou a ter o primeiro trabalho, os meus pais e irmãs me fortaleceram e empurraram sempre na direção dos meus sonhos.

E continuo perguntando. E partindo do zero. E vencendo. E muitas outras meninas e mulheres me amaram. E eu a elas.

Vera Ione Molina  é autora de livros de contos: Outros caminhos, Mercado Aberto, 1997), O quarto amarelo, (Editora Bestiário, 2015); infantojuvenis : Eram duas vezes, Catarina abre um caminho de magia, Não sou nenê, sou cachorro (Editora Bestiário); novelas: Notícias da guerra e o destino de Laura, O gemido da morte sob a sola dos sapatos e Depois que tudo passar (Editora Bestiário).

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