Tradução de Thomaz Albornoz Neves
X – Houllebecq Desencarnado
“Os outros são a consciência do tempo em si enquanto que o um (que abarca reconhecidamente mais do que o eu no que concerne a estrutura, autoconhecimento e desconhecimento, pois inclui a condição animal, inata) é o saber do tempo como circunstância, como mera articulação do que exige ser sem ser alcançado.
É o que ocorre com a narrativa de Michel Houellebecq, é o que ocorre com a imbecilidade: é um transcorrer entre o ser em si, e o pretender ser em si, um tipo de alteração ou ruptura do Princípio do Terceiro Excluído, ainda que não tão drástica, bastante próximo do império ostentoso, mas eminentemente débil do banal erigido”.
Jean-Paul Sartre
Fragmento inédito do livro Houellebecq, escrito depois de Baudelaire e de O Idiota da Família, dedicado a Flaubert. Supõe-se que Sartre fala de um escritor apócrifo, mas o sobrenome que utiliza em seu ensaio remete a uma espécie de premonição “bizarra” no sentido francês da palavra: Sartre morreu muito antes que aparecesse o primeiro livro de M. H.
Tradução: Rafael Courtoisie

XIII – Para Rodin
O perdido persiste para sempre
o que permanece não está:
Ignoro tudo o que sei.
E sei que ignoro.
Nua de mim
mais para dentro.
Camille Claudel, Paris, 1910

XVII – Sylvia Plath lê um poema de Vallejo antes de cometer suicídio
“Morrerei em Londres com aguaceiro”
é um bom verso, creio
já levei as crianças a um lugar seguro
já abri a tampa do forno, já girei
a torneira do gás, e pus minha cabeça
em Auschwitz, meu belo rosto
de judia no forno do fogão
de joelhos, cravada, como se fosse
dizer minha última prece, oro
a ti, Ted, oficial das SS, príncipe
doméstico, meu amor, meu céu,
my sweet heart, my honey, deixei a torta
de morango que tanto gostas, pronta
na geladeira, para ti,
el libro que desdenhas
de César Vallejo, mal traduzido
ao inglês no seu lugar, à esquerda
na terceira prateleira
da estante, junto a esses sonetos
tão estúpidos, tão falsos
que me escreveste
minha vida.
Quando chegues
—avisado pela polícia
e os vizinhos—
não acendas a luz
da cozinha.
A deflagração
poderia queimar
este poema.
Sylvia Plath, Londres, 1963

XXI – Do que não se pode falar é melhor calar
Sou pouco
e o pouco
que sou
é demasiado
meu corpo
ocupa
um instante
quando eu não exista
a imensidão
terá outro rombo:
o poço de mim
meu furo
pleno, exíguo
sem carne
escombro
puro
osso
fossa
viva
sou pouco
e o pouco
que sou
não cabe
nas
palavras
Ludwig Wittgenstein Cambridge, 1949

XXII – O gigante míope
Uma bicicleta estragada, ferrugem
sobre um monte de Vênus
de lixo
em São Paulo:
um par de óculos
de um gigante morto
e enterrado no Brasil profundo
um golias míope, degolado
abatido
por una horda
de pigmeus, por uma linha
de formigas invencíveis comunistas, brilhantes
de quitina, operárias
os óculos do gigante
—a bicicleta morta, sem espelhos—
olham ao céu
desde o entulho
da cidade
latas, panos, garrafas
quebradas
lixo concreto
de nuestro inmenso y querido
Brasil:
poesia
muda poesia pura
pura poesia muda
suja poesia pura.
Ferreira Gullar, São Paulo, 1987

XXV – O yang é yin
A tormenta que vês lá fora
é a calma que levas dentro.
A quietude se alcança pelo movimento
e pelo movimento se chega à quietude.
A quietude é um instante do movimento.
A tormenta é o nome da paz
a chuva é o nome da terra seca
todas as coisas úmidas recordam o sol
que as iluminou e toda a sombra é consequência,
efeito, fruto da raiz da luz.
Cada relâmpago
é um piscar de Deus,
cada nuvem uma letra
do teu nome submerso no lodo
do arrozal onde cantam ao céu
as espigas mais belas e te chamam
docemente os vermes: os anjos
caídos voam mais alto.
Zun Lien Lee, Wei Fan, 2387.

XXVII – Inédito de Rubén Darío: A Tentação de Penelópe
Não era bela nem feliz essa mulher
na tarde gris e outonal, altaneira
farta de tanto tecer e destecer
a véspera no monte de oliveira
de uma estranha crucificação:
o regresso do seu marido.
Tão rara assim é a paixão:
de vinho a vinagre para beber
cantava até o entardecer,
à noite emudecia
para chamar o olvido
mas só o demônio aparecia.
Escrito por uma médium no centenário da sua morte, Ciudad Darío, Nicarágua, fevereiro de 2016.

XLV – Inédito de Raymond Carver: Fisher’s Short Story
Meu pai tinha um modo especial
para enfiar a isca no anzol
quando íamos pescar trutas
era um modo aprendido com seu pai
e que meu avô aprendeu com o seu pai
de forma que eu sou a quarta geração
em pôr em prática o segredo.
Hoje fui com meus filhos rio acima, remontamos
dois quilômetros além da cascata
armei as varas de fibra de vidro e os molinetes
especiais de linha de náilon transparente, capazes
de resistir noventa libras, muito mais
do que pesa uma truta. “É para caçar
tubarões?”, zombou meu filho maior.
“És Hemingway pescando no Golfo,
papai?”, riu o primogênito.
“Não precisa tanto”, acrescentou meu outro
filho: “As trutas estão cada vez menores,
pela contaminação”, afirmou.
“Sim, o glifosato causa câncer
nos peixes”, zombou o maior.
“Vamos jantar trutas muito magras,
envenenadas”, disse. Y acendeu uma bagana
de maconha. Convidou o irmão
menor e me olhou com deboche
enquanto eu colocava a minhoca viva
no anzol, tal como aprendi
com meu pai. “És um sádico, Daddy”,
disse meu filho pequeno. “Que mal te fez
esse pobre verme? Que crueldade,
Dad! ¿Nunca ouviste falar em veganismo?”
A minhoca se movia, parecia
um signo vivo de interrogação
na tarde de Iowa.
“Os escritores são pescadores
frustrados”, disse o maior. “Ou será
o contrário?”, acrescentou o outro.
Os dois riam, riam
às gargalhadas pelo efeito
da canábis. Pareciam aproveitar muito
o momento. Muito.
Acho que meus filhos não gostam de pescar.
Nem de ler. Eles gostam
de ver como o fumo sobe
ao cérebro.
O pai do meu avô,
meu avô e meu pai
eram bons pescadores
de trutas.
Mas as trutas estão
cada vez menores
e escassas.
Acho que a tradição
morrerá
comigo.
Do livro inédito Travels with Nobody, traduzido por encomenda ao espanhol peninsular. A editora solicitante faliu na última crise espanhola. O tradutor não conseguiu publicar a obra, até agora, na América Latina. Talvez as versões dos poemas requeiram uma adaptação: não é fácil substituir “baseado” por “bagana”, salvo no Río de la Plata, e a expressão “cigarro de maconha” soa algo artificial. Esse tipo de situação ocorre em quase todos os textos. Seria necessário criar outra versão ou traduzir novamente todo o livro. E a agência literária pede mais de dois mil dólares pelos direitos. Too much, certainly.
Rafael Courtoisie nasceu em Montevidéu, em 1958. Um dos mais reconhecidos autores ibero-americanos contemporâneos. Membro correspondente da Real Academia Española, membro da Academia Nacional de Letras del Uruguay, integrante do International Writing Program (Iowa University). Sua Antología Inventada foi traduzida e editada en francês, inglês e italiano. Recebeu, entre outros, o prêmio Fundación Loewe de Poesia (juri presidido por Octavio Paz), o prêmio Casa de América de Madrid, o prêmio Jaime Gil de Biedma e o prêmio Blas de Otero (Espanha); o prêmio Plural (México, juri presidido por Juan Gelman), o prêmio Internacional Jaime Sabines (México); o prêmio Internacional de Poesía José Lezama Lima (Cuba); o prêmio de Poesía del Ministerio de Cultura, o prêmio Nacional de Narrativa, o prêmio Morosoli, o prêmio da Intendencia de Montevideo, e o prêmio Bartolomé Hidalgo, tanto em Narrativa como em Poesia (Uruguai). Professor de Literatura Ibero-americana e Teoria Literária no Centro de Formação de Professores do Uruguai, de Narrativa e Roteiro Cinematográfico na Universidade Católica do Uruguai e na Escola de Cinema do Uruguai. Professor Convidado na Florida State University, Cincinnati University, Iowa University (EUA), Birmingham University (Inglaterra), Universidad Nacional de Colombia e Universidad de las Artes de Ecuador, entre muitas outras.El ombligo del cielo (Santiago, Chile, 2012), La Novela del Cuerpo (Montevidéu, 2014) e El Libro de la Desobediencia (Montevidéu, 2017) são suas novelas mais recentes.Traduziu Emily Dickinson, Sylvia Plath, Raymond Carver, Mario Luzi, Valerio Magrelli e Alessio Brandolini, entre outros.Los Puntos sobre las Íes (Madri, 2019), La Poesía es un Crimen (Nova Iorque, 2020) e Partes de Todo (Nova Iorque, 2021) são algumas antologias da sua poesia. Sua obra foi objeto de numerosas teses universitárias na Europa e nos EUA, além de ter sido traduzida ao inglês, francês, italiano, português, romeno, uzbeque, bósnio e turco, entre outros idiomas.



Genial!