O corpo e o sangue de Cristo
é um dos 52 contos de Madreselva,
livro lançado em 2023 pelaa Diadorim Editora.
Ana Lucía engoliu a mãe quando tinha nove anos e cinco meses. Foi no dia da sua primeira comunhão. A princípio, o mais importante que Ana Lucía engoliria naquele dia seria a hóstia consagrada, inclusive tinham ensaiado o momento por mais de três meses na capela do colégio em duas filas organizadas em ordem de estatura. As meninas se aproximavam do altar da capela e, com a solenidade que o corpo e o sangue de Cristo exigiam, abriam com delicadeza suas pecadoras boquinhas para permitir que o padre pousasse a lâmina banhada em vinho consagrado. O que mais as atemorizava era o gosto do vinho, pois suas papilas gustativas ainda não tinham tido contato com líquidos proibidos (com exceção de Clara Viviana, que aos sete anos ficou bêbada com os vidrinhos de amostra de whiskey que o avô guardava na biblioteca, e de Isabel Emilia, que tinha provado a aguardente quando tinha oito anos, a convite do tio).
Ana Lucía aguardava o dia com ansiedade. Duas semanas antes tinha se confessado e ainda podia sentir a leveza que tomou conta dela ao sair do confessionário com a bênção do padre. Todos sabemos que, independentemente da idade, os pecados pesam, e para a menina foi um alívio poder contar para o padre que ela e Catalina, às vezes, se trancavam no quarto da mãe de Catalina e brincavam que ela era o homem e Catalina, a mulher e fingiam que estavam “tendo relações”, mas nunca se beijavam, apenas sentiam os corpos e depois brigavam porque Catalina descobria que Ana Lucía, ou seja, o pai de Catalina, tinha outra mulher. Ou que ela tinha roubado umas moedas que a avó guardava na gaveta do criado-mudo. Ou que brigava muito com a irmã e às vezes batia nela. Ou que não merecia seus pais porque não era boa estudante. Ou que tinha folheado o livro de educação sexual com a prima e a prima tinha mostrado para ela onde ficava a vagina. Contar tudo isso para o padre foi um alívio e na manhã da sua primeira comunhão ela estava leve e nervosa por causa do gosto do vinho, que era o sangue de Cristo, que morreu para que ela pudesse se salvar de todos esses pecados e dos que cometesse pelo resto da vida, como tinha explicado Marina Agualimpia, a professora de religião.
Mas naquela manhã a leveza foi se transformando em peso quando Ana Lucía viu que a mãe estava brava porque sua irmã mais velha não queria usar os sapatos azuis que tinham comprado para ela. Enquanto tomava café com seu pai no primeiro andar, ela ouvia os gritos da mãe e as batidas da porta do quarto da irmã, que se recusava a obedecer. Ana Lucía sentiu como o nescau se misturava com o pão e o ovo frito no estômago, formando uma massa mais densa do que o normal, que desembocou numa dor de barriga, mas não teve tempo para pensar nisso, porque o pai a tinha mandado subir e se arrumar antes que a mãe zangasse com ela também. Então ela embuchou o resto do café da manhã e se levantou.
Quando começou a subir as escadas, sentiu que a massa tinha ganhado mais peso e a barriga estava crescendo. Pensou em que sua mãe ia ficar furiosa porque o vestido da primeira comunhão não tinha como entrar nela. Quando chegou no final da escada, já parecia com uma gravidez de quatro meses e tinha as mãos geladas. Ouvia o barulho do secador de cabelo de sua mãe, que estava dentro do banheiro. Olhou para baixo e se encontrou com os olhos do pai, que com o olhar a encorajou para que entrasse. Quando entrou, a mãe desligou o secador, a pegou pelo braço, a colocou na frente do espelho e começou a desembaraçar o cabelo. Despois ligou o secador na temperatura mais alta e o colocou sobre a cabeça da menina. A mãe separava mechas do cabelo e as puxava com força, ajudada por uma escova redonda de fios duros, enquanto aproximava o secador quente. Quando chegava no couro cabeludo, Ana Lucía sentia que o ar quente ia deixar-lhe a cabeça em carne viva. Quando todo o cabelo ficou seco e liso, a mãe fez um meio-rabo de cavalo e o prendeu com uma fita branca. Alguns pedaços da parte de cima ficaram irregulares, mas ela não ousou dizer nada, a mãe já estava esborrifando a laca, agora não tinha como voltar. Com a laca, ela sentiu que a barriga se inchava mais um pouco. Se olhou no espelho tentando amassar as partes irregulares com a palma da mão, até sentir a respiração curta e forte da mãe, que a olhava com impaciência, segurando um batom vermelho entre o indicador e o polegar direitos. Mandou a menina ir rápido se vestir, eles já estavam atrasados para a escola. Ela fez ênfase em rápido, alongando o erre. Ana Lucía olhou para a boca da mãe enquanto pronunciava a palavra: em nenhum momento separou os dentes superiores dos inferiores, mas os lábios se esticaram para os lados, o que a deixava parecida com um cachorro raivoso. Ana Lucía abriu a boca para falar que estava com dor de barriga, que estava inchada e dura, e não sabia se o vestido iria entrar, mas as palavras da mãe, sobretudo a palavra rápido, tinham uma vibração tão forte que viajaram até ela em uma velocidade muito maior do que os reflexos de suas cordas vocais, e se meteram na boca da menina.
Em boca fechada não entra mosca, Marina Agualimpia sempre dizia. Em boca fechada também não entram mães raivosas condensadas em erres, mas estando dentro, só restam duas opções: cuspi-las ou engoli-las. Ana Lucía a engoliu por costume. Tinha ensaiado a forma mais discreta de engolir o corpo e o sangue de Cristo pelos últimos três meses. Todos sabem que a língua, como os pensamentos, não é fácil de controlar, ela faz o que quer, ainda mais quando se é uma criança sem treinamento na arte de se ter um corpo. Era de se esperar que nesse momento a língua sentisse o gosto de hóstia amarga da mãe e rapidamente a mandasse para trás, para a garganta, e que esta, num ato reflexo, começasse a engoli-la devagar até uni-la àquela massa crescente e dolorida que se acumulava na barriga. Quando terminou de engolir a mãe, já tinha chegado no quarto. Se enfiou no vestido como deu e pediu para o pai que fechasse o zíper. Ele lhe disse que estava muito bonita. Ela não acreditou.
“O corpo e o sangue de Cristo”, disse o padre segurando a hóstia banhada em vinho. “Amém”, disse Ana Lucía e abriu a boca com timidez. O gosto do vinho se sentiu bem, talvez por contraste, e ela deixou que a hóstia fosse derretendo entre a língua e o céu da boca no caminho de volta ao seu lugar na capela. Já no seu banco, se ajoelhou e inclinou a cabeça, com as mãos juntas em sinal de prece. Quando a hóstia terminou de se dissolver, ela sentiu de novo a dor na barriga. Estava um pouco mais inchada. Não é fácil digerir uma mãe, mas, se rezasse, Jesus a ajudaria: nos últimos dias ela não tinha pecado.
Ángela Cuartas cursa doutorado em Escrita Criativa na PUCRS e é autora do infantojuvenil Ceiba (2017). Junto do poeta e tradutor Diego Grando, coordena o grupo de estudos em tradução literária e escrita criativa.


