DO QUE VERTE, por Ronaldo Lucena

O conto venceu o primeiro concurso
de contos de Carlos Barbosa, 2022

Na primeira manhã que acordou e viu seu lado da cama encharcado, pensou tratar-se da noite de sonhos estranhos, tendo deixado o corpo em febres. Tapou com o lençol a mancha molhada acreditando, assim, esconder da mulher quando vestisse o leito. Já fazia tempo não ter pressas pela manhã, não sofria mais pelo horário. Desbebeu o corpo e no banho não se deu conta de estar aberta a ferida antiga, nas costas do ombro esquerdo. Por anos a havia esquecido. Também não dava contas das outras marcas envelhecidas no corpo – cicatrizes, cabelos brancos, rugas e manchas na pele – mostrando mais do tempo no reflexo do espelho embaçado. Não era homem de ficar lamentando a própria imagem.

Vestiu a roupa já preparada pela mulher. Aprendera a não mais teimar, convencendo-se da pouca habilidade em combinar as mesmas poucas peças de roupa que tinha – precisava andar melhor vestido, insistia ela. Por isso era sempre grato, nas orações matinais, pela companheira deixar na temperatura ideal o café com leite, coado para evitar qualquer resquício de nata flutuante, ao lado do pão com mistura.

Preparava o chimarrão enquanto a água aquecia, a mulher que tinha naquele homem seu maior resgate. Sorvia o morno do primeiro mate escorada na pia, não cansando de olhar os ombros largos do marido, com as costas encurvadas sobre a mesa, onde ele nutria o corpo. A água fumegante que ela enchia a cuia, por instantes, desfocou a mancha escurecida na camisa clara dele.

O que é esse molhado nas tuas costas? Do que estás falando? Parece que não secaste direito do banho. Não estou velho a esse ponto. Não podes sair com a camisa desse jeito. Ela seca no corpo. De jeito algum, vou buscar outra limpa.

Ela o ajudava a trocar a camisa quando os olhos não entenderam o que se desenhava no ombro do marido. A cicatriz conhecia naquela anatomia decorada estava aberta, e vertia um líquido incolor. Ele demorou a desfazer o silêncio quando ela terminou de descrever o que via. Entendeu ele, então, só naquele momento, a cama molhada pela manhã. Mas foi a única coisa que entendeu.

É sangue? Não, o que escorre é claro, bem claro. Mas eu não sinto nada. Não lembras de ter batido ou arranhado? Com certeza não lembro. Quem sabe tu mostras pro doutor, teu amigo. Não deve ser nada. Não custa uma visita.

O curativo que a mulher fez, pela manhã, não deu conta de reter a água que brotou durante o dia. A esperança de ser algo sem importância foi minguando com o passar da semana. No sábado, depois de reencontrar a cama molhada, não teve mais como adiar. Tomou apenas o café, em silêncio, enquanto a mulher recolhia os lençóis para lavar, aproveitando a manhã de sol de um agosto de últimos dias. Vestiu as botas e recusou o chimarrão pronto.

Vou tomar um mate com meu amigo Maximiliano.

A mulher até pensou se na volta ele poderia passar no mercadinho e trazer algumas coisas que faltavam em casa. Mas entendeu, ela mesma arrumaria um tempo para isso, antes que ele regressasse para o almoço. Melhor foi não dizer nada enquanto ele fechava a porta.

O médico havia madrugado. Na varanda envidraçada da casa, uma das melhores do vilarejo, tinha o chimarrão e sol de companhia na leitura dos manuais de medicina recém recebidos pelo correio. Avistou o amigo chegando com passos firmes, vincos na testa, no gramado aparado de véspera.

Que tanto peso nessa cara, Francisco? Ando meio preocupado. A essa hora, percebi de longe que não vieste só para uma visita. O sono tem me abandonado. Senta e toma um mate. Agradecido.

Por minutos, só os cães da casa desrespeitaram o silêncio dos dois.

Que tanta água posso ter dentro do meu corpo? O suficiente, apesar de muito, para manter tudo em equilíbrio. Virei uma vertente. Os sumos que excedem precisam dar vazão, deixar o corpo. A continuar assim, quem sabe viro um rio. Qual problema nisso?

Tirando o casaco, abrindo os botões da camisa, deixou o ombro desnudo aos olhos do amigo.

Lembras desse furo aí? Não tenho como esquecer um dos meus primeiros pacientes. Ele resolveu me fazer lembrar. Pensei ter feito um bom trabalho. Acho que a sutura esgaçou com o tempo. Nem tudo é culpa desse senhor chamado tempo.

O médico ajeitou os óculos e examinou o orifício umedecido. Apertou com os dedos as carnes do entorno e o líquido escorreu, sem cor e sem cheiro. Testou os movimentos do braço e os pulsos.

Tens notícia dele? Nunca mais o vi. Ele ainda deve ter medo de te encontrar. Foi embora logo depois, quando soube que eu estava vivo. Acho que isso é o que mais deve doer nele. Não é fácil me derrubar. Tu sabes dos motivos que ele teve para tentar, outros não tiveram a mesma coragem em apertar o gatilho. Sempre tive minhas brigas, eu nunca fui santo. Ninguém é santo quando sai da casa com uma arma na cintura. Naquela noite eu não estava armado, passei no União só para pegar cigarros. E por que o desentendimento? Isso ninguém vai ficar sabendo, ele me incomodou. Relevar nunca foi da tua religião. Minha reza era outra naqueles tempos. E precisou humilhar o rapaz? Meu único arrependimento é ter dado tempo para ele preparar a tocaia.

Vestiu a camisa, o casaco, e sob o olhar do amigo médico, sentou-se mais aconchegado na poltrona ao lado. Por instantes, o silêncio não foi interrompido por nenhum animal ou murmúrio do vilarejo circundando os dois. Nada interferiu nas memórias que se fizeram vivas naqueles poucos minutos. Os olhos não envelheceram, como todo o resto ao redor.

Preciso fazer alguma coisa? O que realmente tu gostarias de fazer? Arrancar essa ferida, secar. Por que achas que eu poderia fazer isso por ti? Tu és o médico, atende a todos. Nem todas os males um médico pode aliviar. Mas deve haver algum emplastro, um remédio. Para essa ferida tu tens mais unguentos do que eu possa prescrever.

Francisco deixou o amigo com um abraço forte, de gratidão, na despedida. Sentiu-se mais uma vez salvo, como se um outro projétil tivesse sido retirado. O médico apenas sorriu no adeus.

Tu sabes como cerzir essa ferida, estancar a vertente.

Francisco decidiu deixar a mulher esperando com o almoço pronto em casa. Fez um caminho diferente e quando chegou diante daquele portão, apenas bateu palmas. Viu no movimento da cortina o olhar escondido que se perguntava. Sabia que não entenderiam sua presença ali. Tinha certeza do medo que ainda transmitia e da raiva retribuída, mesmo depois de tantos anos. Mas não podia mais recuar, não era homem de recuar.

Sentiu o líquido verter nas costas.

A espera diante daquele portão castigou os pés presos no chão e as botas marcando os cascalhos da rua.

A porta da casa abriu. Quando ela se fez inteira no vão, o corpo curvado e o rosto envelhecido mantinham a tristeza da última vez que os olhos de ambos se cruzaram. Ela passou por sobre os ombros o chale escuro. O frio é impiedoso com a dor nas juntas. Com dificuldade para descer o primeiro degrau, teve um leve desequilíbrio, mesmo escorada a mão no marco da porta. Caminhou sustentando o olhar até o portão.

Francisco viu a tristeza impregnada por anos nas mãos e rugas daquela senhora. Quantas seriam por sua causa? Quantas seriam pelas ausências do filho em fuga pelo mundo? Que tantas culpas e medos todos carregavam naquela história.

E o que nunca mais verteu pela ferida nas costas, vertia, agora, nos olhos dele.

Preciso encontrar teu filho.

Ronaldo Lucena nasceu em Caxias do Sul. Formado em medicina, pós-graduado em Letras, MBA em desenvolvimento de gestores, mestre em Engenharia, mas prefere ser apenas mais um peregrino dos Caminhos de Compostela.

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