‘A MENINA INVISÍVEL E OUTRAS HISTÓRIAS DE VISAGEM’, DE MARY SHELLEY

Por Lucio Carvalho

E

nsina a ciência que ele se inicia por um disparo sutil das supra renais. Logo, o corpo inteiro é avisado de que a carga de stress habitual deve subir um pouco mais e manter-se num nível mais alto de atenção e vigilância. Hormônios adrenais a postos, a pessoa então se vê na situação de ser levada pelo desencadeamento de uma das mais primárias forças irracionais: o medo. Mas o medo não é uma reação que se dá somente diante a um risco real ou pela predisposição evolutiva; na prática, ele se manifesta sempre que os instrumentos racionais falham em explicar uma situação, um filme ou, mais raro hoje (mas nem tanto), um livro.

Quando é de um livro com textos escritos há quase 200 anos e que só agora vêm sendo traduzidos no Brasil, a experiência é então ainda mais assombrosa. E caso se procure comparar a literatura de alguém como Mary Shelley com a coleção de filmes feitos hoje para sobressaltar os incautos nos cinemas e no streaming, a discrepância é gritante. A autora que colocou no mundo o portentoso Frankenstein é de uma sutileza e inocência de arrepiar. Nada parecido à obscenidade das franquias de filmes classificados no gênero terror ou horror, tanto faz.

Encadernado à mão numa delicadeza editorial e numa tiragem especial de livros numerados, somente agora no segundo semestre do ano começam a chegar às livrarias os exemplares de A menina invisível e outras histórias de visagem, publicação da editora paranaense Arte e Letra que traz três histórias curtas de Mary Shelley e um ensaio que ela publicou no longínquo em 1833 na revista The Keepsake.

Ao contrário do pessimismo em face da modernidade como expresso no Frankenstein, nestes breves “fragmentos góticos” comparecem mais elementos que denunciam o desaparecimento da narrativa fabular medieval. No texto que intitula o livro, ela se vale de uma narrativa contada por uma terceira pessoa, mais ou menos na mesma tradição do conto popular ou do “causo”. A ideia é causar medo pela narração e não, é claro, por uma súbita aparição ou apelo direto ao sobrenatural. A sugestão vale mais do que o óbvio e a narrativa contínua cria pouco a pouco a atmosfera de suspense em torno de um enredo até simples, com um desfecho nada apavorante.

Sugestão, aliás, é o que se encontra também nos outros textos reunidos no livro. Em O imortal mortal e em Mau olhado, a fartura de elementos históricos obscuros, alquimia e referências ao mundo grego desenvolve o drama de personagens em busca de vingança e a bagatela da imortalidade. Não se encontra uma atmosfera de espanto nestes contos, mas é oportunidade dos leitores deliciarem-se com sua ficção que, apesar de uma linguagem direta, não é nem óbvia e nem previsível.

Leia mais do autor em Sepé.

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