Por Guilherme Azambuja Castro
Lygia Fagundes Telles publicou Antes do Baile Verde em 1970. Ela já havia publicado contos em outras antologias, mas agora vai reunir o que havia escrito de melhor no gênero. Eram os anos do boom no conto brasileiro.
Quando comecei a querer me aventurar a escrever contos, fim dos anos 2000, fui orientado por meu professor de oficina literária a ler os contistas dessa época. Eu ainda era muito fiel a autores estrangeiros, e isso me cegava um pouco. Então li Luiz Vilela, Rubem Fonseca, para citar dois, e uma coletânea de contos selecionados de Lygia – brotou aí a paixão.
O que me fisgou, de imediato, foi a forma como Lygia, econômica em meios, desvela o humano profundo. Sua literatura se preocupa, em igual medida, com linguagem e tema. Além disso, os diálogos, os narradores, os enredos, e ainda no campo do enredo, os desfechos, parecem urdidos com espírito de artesã. Sim, Lygia não é apenas a dama, mas uma artesã: artesã da palavra. Li com atenção o que pude ter em mãos de Lygia. Por prazer e por ofício. Porque já a amava e porque sabia que, a lendo, estava aprendendo a escrever – não apenas o conto, mas literatura.
Houve uma época em que passava na TV Cultura um programa chamado Contos da meia-noite. Eram contos de escritores brasileiros narrados – melhor: interpretados – por atores e atrizes. É – se pode acessá-los no Youtube – uma experiência sinestésica. Eu assistia a esses episódios e voltava a assistir. Queria entender mais sobre o narrar. A arte de desvelar uma história na e pela voz. A pulsão. O ritmo. As pausas. As modulações. Os silêncios. E ali havia material de sobra.
Dois contos de Lygia participavam da série: “A caçada”, narrado por Antônio Abujamra, e “Natal na Barca”, por Beatriz Segall. Então, quanto a esses dois contos, primeiro os vi e ouvi, na televisão, para depois os ler no livro. Assim, ao lê-los, de alguma forma eles já constituíam a minha memória afetiva, a minha paixão. Os contos integram Antes do Baile Verde. Vou tentar resumi-los.
“A caçada” conta a história de um homem que, ao entrar num antiquário, percebe algo misteriosamente perturbador numa antiga tapeçaria. Parece reconhecê-la de outros tempos. Na obra está representada a cena de uma caça. Caçador e caça: homem e animal. E há um terceiro elemento na imagem: outro caçador à espreita. Lygia trama a história de modo que, a certa altura, já não podemos precisar se o personagem está fora ou dentro da tapeçaria, se é um mero observador ou a própria caça.
Em “Natal na barca”, a voz em primeira pessoa (uma narradora feminina, a autora?) conta que um dia, sem saber bem por que, cruzava um rio em uma barca. Era noite de Natal e ali, junto a ela, estavam um bêbado, o condutor e uma mulher carregando um bebê de colo. A narradora queria ficar em silêncio, mas acabou se envolvendo com a história da mulher. Era sobre um filho que havia morrido e sobre um marido que a abandonara. Mas a mulher com o bebê não demonstrava nenhum abalo. Contava suas histórias como se a miséria de sua vida fosse destino e depositava uma aparente esperança naquele bebê cujo corpo, percebeu então a narradora ao tocar nele, estava frio, tão frio quanto o de um morto.
O livro traz 18 contos que são verdadeiras obras de arte. A perfeição da forma breve. A beleza no tratamento do humano, na elaboração das cenas e personagens. A preocupação com a urdidura dos fios da história, a fabulação, a construção de vozes. Lygia inventou jeitos novos de se escrever o conto.

