‘ESBOÇO, TRÂNSITO, MÉRITO’, DE RACHEL CUSK

Por Tatiana Cruz

Talvez por apreciar a solidão, talvez por viver sempre acompanhada, a leitura da trilogia de Rachel Cusk tenha caído como um bálsamo pra mim na reta final deste ano. Faísca atrasada, dirão, e vou assentir com a cabeça. Todos já a descobriram. Todos já falaram dela. Eu sou tipo a ultima mulher do músico ou do pintor famoso antes de sua morte, chego depois da glória, evitando me apegar ao já dito e referido, dou as curvas nas opiniões e me permito degustar, ao meu jeito, as sobras.

Rachel tem uma narradora única, meio rara: uma primeira pessoa potencializada em terceira do plural, uma primeira pessoa que está em tudo e, ao mesmo tempo, de si quase nada fala. Faye, sendo escritora com um certo prestígio, atravessa cidades, eventos literários, lembranças alheias… Faye atravessa todas as pessoas com as quais cruza e nos entrega o melhor da literatura: estamos sós e estamos acompanhados. Nossa narradora em primeira pessoa encarna um exercício que faz falta hoje em dia: a escuta. Como leitora, eu deliro com a qualidade do seu tempo e da sua entrega a personagens banais, corriqueiros. Sua entrega a eles espelha a minha entrega, como leitora, ao melhor dos livros, o livro que se lê por absoluto prazer, sem necessidade, o livro lido pelo simples prazer de se ler histórias.

Falando em história, a trilogia composta pelos livros Esboço, Trânsito e Mérito, vai deixar desapontado o leitor ávido por um enredo romanesco, por suspenses, plot twists, acontecimentos que viram o mundo de cabeça para baixo. Tudo, nos três livros, é pequeno. Tudo é pequeno, como eu e você, nossas vidas pequenas, com acontecimentos pequenos, e isso, a meu ver, é o grande trunfo de Rachel. Convivemos com nossa narradora como se colássemos ao lado de uma uma amiga discreta e reservada, porém muito observadora, a quem, de forma misteriosa, fosse concedido um poder de atração estranho, o de sugar, como uma imã, dezenas de pessoas com suas línguas soltas, desenrolando histórias. Em uma escala de cor, Faye seria a cor preta a tudo absorvendo e atraindo. Como fenômeno do universo, seria o buraco negro puxando tudo que existe para o seu interior. Por ela sabemos da vida amorosa do vizinho de poltrona no avião, descobrimos a geografia da saudade de um cidadão do Leste Europeu em agruras numa Londres intraduzível, seguimos o fio do desabafo de alguém que havia enterrado seu próprio cão em um acesso de raiva para simplesmente entender a sua raiva, para simplesmente entender que nada era bem assim, afinal desabafos são angústias entupidas, saem soltos, enviesados, pedindo por escuta, pedindo ouvidos, desdobrando falas: a fala, essa rainha destronada da literatura.

Rachel é a celebração da polifonia sem aturdir com o excesso de voz, uma raridade em tempos de Tik Tok e outras intromissões. Rachel nos lembra como ler é bom. Tipo o amor na maturidade, tipo encontrar o amor, mesmo que tarde. Como é bom.

Leia mais da autora em Sepé.

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