‘POETA CHILENO’, DE ALEJANDRO ZAMBRA

Por Lucas Borges

Se você ama uma pessoa, deixe-a livre,
se ela voltar, é sua. Se não, nunca foi

Eu me perdi. Em uma noite de Domingo não soube me identificar. Não soube de fato dizer a mim mesmo quem eu era. Quem sou eu? E o mais importante: o que eu quero ser? No fim, me perdi tentando identificar quem sou. O prelúdio de um temporal soa como uma ameaça verossímil. Nas outras vezes que me perdi a Literatura me salvou, foi a minha bússola, por assim dizer. Anos atrás estava preso dentro de um sistema do qual não queria estar mais e de fato a Literatura estava lá. Foi, mais uma vez, o meu refúgio. Por isso muitas vezes me revira o estômago o discurso intelectual fajuto classe média de que a Literatura não serve para nada. Pessoas sem senso de realidade. Tem várias por aí. Neste momento tenho em mim um misto de sentimentos. Vejo o relógio: 22h57min. Talvez não devesse começar esse texto agora, mas não sinto vontade de fazer mais nada além de escrever. E se não for para escrever com sentimentos verdadeiros prefiro parar por aqui, acender um cigarro e cuidar da horta lá fora, junto com os mosquitos e os dois cachorros, o Snoop e o Preto, que hoje estão agitados.

A primeira vez que fui acolhido pela Literatura de forma concreta, real, foi quando li Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami. Minha vida havia se modificado consideravelmente e o romance tem no seu centro a seguinte mensagem: em alguns momentos da vida devemos nos mover,modificar o que está acontecendo com nós e seguir em frente. Esse é o centro do romance. Comecei a ler antes, durante e depois do meu processo de mudança. Descobri uma felicidade que antes estava distante no meu horizonte e a leitura do romance me mostrou que eu estava no caminho certo. Me senti acolhido e privilegiado de certa forma. Entendi, a partir desse episódio, que a Literatura sempre vai dialogar comigo em momentos tranquilos e também nos momentos cruciais.

O tempo passou. E me via dentro de um novo relacionamento cujo fim era iminente logo adiante. Duas pessoas que se conheceram em instantes diferentes. Nessa época, inconscientemente sabia da situação e para aliviar a agonia que sentia, eu pegava o carro e dirigia. Dirigia às vezes sem rumo, com uma boa música ao fundo. Isso fazia com que me sentisse vivo.

Foi numa quarta-feira à noite. Estava na Livraria Cultura em Porto Alegre. E entre uma prateleira e outra encontrei a obra do escritor Alejandro Zambra condensada em um volume pela editora Companhia das Letras, intitulada Ficções 2006-2014 e uma outra edição com o título Poeta chileno. Um romance de 428 páginas. Enfim, um romance de fôlego escrito por Zambra, porque até aquele momento ele era conhecido por ser um escritor breve, de narrativas curtas. Se o romance era bom ou não, não sabia. Comprei as duas edições e ficaram por lá guardadas por um bom tempo, principalmente Poeta chileno, e por um simples fato: a protagonista do romance tinha o mesmo nome de uma ex-namorada e tínhamos terminado a pouco tempo e confesso hoje que na época era bem custoso encarar aquele nome por páginas e páginas. Assim, decidi que só leria o romance quando todo e qualquer tipo de sentimento por ela tivesse passado e aquilo não fosse um problema. Ou seja, deveria estar pronto.

O exercício da memória. A primeira lembrança de uma conversa sobre a obra de Zambra foi há três anos atrás. Eu e o Raul conversávamos sobre algumas coisas escritas pelo escritor chileno. A minha amizade com Raul datava lá do início da faculdade, isso faz mais de dez anos, e os assuntos mais variados entre nós surgiam. Às vezes apareciam assuntos sérios nas nossas conversas, digamos assim, e nos perdíamos em debates sem conclusões, muitas vezes. Era uma noite de Sábado e o Raul preparava algum tipo de Risoto no apartamento que morava no centro. Larissa, sua namorada, também estava junto e a única pontuação que poderíamos fazer sobre a Literatura de Zambra era que ele ainda não havia escrito um romance de fôlego, mais “denso”. Nós e nossas exigências. Até aquele momento, Zambra já havia publicado escritos bonitos e interessantes e, entre eles, aquele que considero a abertura mais bonita de uma narrativa:

“No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava ou continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura.”

Essa é a abertura de Bonsai, uma narrativa que trata da consciência do fim, seja ele qual for. Raul continuava cozinhando e adicionando todo tipo de tempero que via pela frente e disse que Formas de voltar para casa também era muito bom. Tenho ele ali naquela prateleira, disse enquanto mexia e mexia com a colher na panela, porque, segundo ele, o arroz de Risoto tem que ser sempre mexido, senão gruda tudo e fica “empapado”. Fui até a estante e procurei o livro. Até hoje fico impressionado em como as nossas bibliotecas são muito diferentes. Poucos livros em comum. As novelas de Zambra eram publicadas nessa época pela editora Tusquests, com edições bonitas e que chamavam a atenção e a única ressalva era o tipo de papel que usavam e usam até hoje, que oxida muito fácil com o tempo. Folheei o livro, mas não tive vontade de ler. Tive uma certa preguiça e também estava dentro da obra de J.D. Salinger naquele momento, o que também gerou discussão naquela noite, e informações que poderiam ser consideradas inúteis como em qualquer reunião entre amigos, como a de que parte do O apanhador no campo de centeio foi escrita durante a guerra, com Salinger no campo de batalha e redigindo o seu romance em uma máquina de escrever e um pequeno caderno de informações ou como a aversão dele ao cinema está ligada a figura de Charles Chaplin, por ele ter casado com a então namorada de Salinger durante o período em que ele estava no front e ela simplesmente parou de responder as suas cartas. Claro que o assunto foi para outros campos, o Risoto ficou muito bom, junto com a harmonização do vinho e assim a noite seguiu.

Os anos passaram e depois de mais um término, dessa vez de forma abrupta e estranha, decidi que estava na hora de iniciar a leitura de Poeta chileno. Foi um pouco instantâneo e não premeditado. Estava lá pela página 50 quando o Raul apareceu lá em casa e falei que tinha começado o livro e estava gostando, e ele disse: já li e gostei bastante, tenho certeza que tu vai curtir também. Era uma tarde de sábado e eu estava mais uma vez lamuriando um término estranho, mas dessa vez não me senti desolado ou triste ou até mesmo aliviado como da última vez. Senti que de certa forma tinha evoluído e aceitado que o que importa é descobrimos sobre nós mesmos e de fato entendermos quem somos. Ao fim de tudo: nossa identidade. E então conforme avançava a leitura resolvi ir construindo um texto em paralelo com as minhas impressões da leitura até o momento. Assim, quando concluísse a leitura, pegaria essas anotações e as transformaria em um texto mais consistente. A verdade é que não consigo falar sobre um livro sem falar de todo o entorno que envolve, o caminho da leitura e a nossa construção como indivíduo, como identidades.

E foi assim que me pareceu as primeiras cinquenta páginas do romance, denominada Obra inicial, em que acompanhamos as primeiras descobertas dos protagonistas Gonzalo e Carla, tanto de personalidade quanto sexual e de como Gonzalo se entregou a uma paixão desenfreada e isso culminou no seu fracasso sexual típico de muitos jovens da sua faixa etária. Apesar de uma aparência não privilegiada, Gonzalo se esforçou ao máximo para conquistar Carla, que aos olhos de todos era muito bonita, mas não foi o suficiente, que com a frase “Os sentimentos mudaram”, ela põe fim ao namoro, mesmo com cartas assinadas com pseudônimos e poemas medíocres enviadas por Gonzalo, nada adiantou, pois foram prontamente rejeitadas por Carla. Gonzalo ainda não tinha compreendido um elemento básico da vida: não podemos forçar ou pedir para que alguém nos ame. Gonzalo se afasta e nessa fase da narrativa já podemos perceber o amor de Gonzalo pela Literatura, sobretudo pela poesia, que é para ele uma bússola, um refúgio. E a primeira parte se encerra com a seguinte passagem:

“Santiago é uma cidade grande e suficientemente segregada para que Carla e Gonzalo nunca mais voltassem a se reencontrar, mas uma noite, nove anos mais tarde, os dois se viram de novo, e é graças a esse reencontro que esta história alcança a quantidade necessária de páginas para ser considerada um romance.”

O tempo os separa e nove anos depois se reencontram. Assim, inicia a segunda parte do romance: Familiadrasta. Carla está dançando em uma boate gay e vê Gonzalo sozinho no bar. O reencontro é instantâneo, apesar de Carla a essa altura do campeonato questionar a sexualidade do ex-namorado, afinal ali era uma boate gay e ela logo se justifica para ele dizendo que ali ela pode dançar à vontade sem ser importunada, ao que Gonzalo responde que também não é gay, mas ali é um lugar acolhedor. A atração sexual de um pelo outro vem à tona e Zambra descreve o envolvimento sexual deles apenas como escritor latino-americano poderia fazer: cenas de sexo realistas, sem deixar de ser sedutor e atraente.

A segunda parte do romance se concentra de fato na relação entre Carla e Gonzalo em um primeiro momento e depois se transfere para o filho de Carla, Vicente. O tempo avança e com isso acompanhamos o cotidiano, as dificuldades e as fantasias de dois apaixonados se configurarem em amor. Aqui acompanhamos a angústia de Gonzalo e de como o seu amor por Carla prevalece a ponto de tomar para si a função de pai de um filho que não é seu. Aqui, nesse ponto do romance, se reforça a importância da figura paterna. O que é ser um bom pai? Esse é o ponto crucial nessa altura do romance. Em certa altura, também vimos a fragilidade de Carla dentro da relação e como ela não imagina seu futuro longe de Gonzalo, é uma breve passagem, mas que denota um ponto de virada crucial na trama. Sinto pena de Gonzalo, um herói improvável que abriu mão de muitas coisas em nome do amor. E no fim, que sentimento prevalece? E se prevalece, vale a pena lutar por ele, sacrificar a liberdade de um homem solteiro na casa dos trinta anos para entrar numa relação cuja existência de um filho que não é seu já há? São questões abertas dentro do romance. Questões colocadas por Gonzalo em xeque.

De forma hábil, Zambra alterna o ponto de vista narrativo entre o trio Gonzalo-Carla-Vicente. E aqui o desenvolvimento de Vicente entra em cena, principalmente com o episódio envolvendo a gata da família, Obscuridad. Vicente fica irritado com a iminente não operação da gata por motivos financeiros e ali somos apresentados a uma criança inteligente, esperta e com sentimentos genuínos. Zambra, no fundo, constrói um romance de formação.

Vicente tenta de todas as formas que a ele compete arrumar o dinheiro para a operação: tenta vender sua bicicleta, seu colchão, entre outros. Começa também a apresentar um comportamento muito ruim, principalmente no âmbito escolar, mas esse episódio é importante para o crescimento tanto em termos de personalidade quanto na questão financeira, porque esse episódio marca a sua iniciação no que diz respeito a sua educação financeira, feita de forma forçada e não de uma maneira preparada, com todos os tipos de métodos possíveis, como a classe média atua, por exemplo.

Um bom romance também deve ser capaz de prender o leitor dentro de um cotidiano do qual os personagens estão inseridos. De fato, aqui o tempo passa, as objeções ocorrem os devaneios de cada um passa, assim como dúvidas comuns àqueles que estão por muito tempo dentro de um casamento, dentro de uma vida em família, como essa passagem:

“Com o tempo se perde o ruído dos dias, torna-se difícil lembrar com precisão como a vida cotidiana soava, qual era nossa ideia de silêncio – qual era o repertório de sons incluídos no ruído branco: espirros, tosses, suspiros e bocejos, os carros e caminhões passando na rua, a gritaria esporádica de vendedores e pregadores, barulho caprichoso da geladeira, as sirenes distantes, os alarmes e os pássaros que evitamos alarmes, as melodias assoviadas ou murmuradas, os tremores das portas, e inclusive as palavras,as frases plenamente articuladas em tons que não rivalizavam com o silêncio. Todo mundo fala sozinho, por exemplo. Isso nunca aparece nos filmes. Nos filmes, alguém falar sozinho parece intolerável. Todo mundo fala sozinho, mas veem um filme em que as pessoas falam sozinhas, são capazes de sair no meio da sessão, indignados, e voltar para as suas casas para dizer em voz alta a ninguém: que filme ruim.”

Em certa altura da vida tudo parece estar em um encaixe perfeito e basta vir apenas um golpe para tudo desmoronar. Muitas relações são assim. O ponto de virada do romance: Carla está grávida. Todos estão felizes, projetam um futuro juntos, Vicente imagina nomes, possíveis brincadeiras com o irmão, mas logo o golpe vem à tona: Carla perde o bebê e a família, de forma invariável, começa a desmoronar. Penso nessas questões enquanto escrevo em um café a caminho do trabalho. 17 de Outubro. Fico ladeado pela máquina de café e a vitrine e isso me traz uma sensação de conforto. Penso em relações amorosas que se desgastam até não ter mais condições de ser levada adiante ou como são rompidas de forma abrupta. Ambas são tristes e com Gonzalo e Carla não é diferente. Gonzalo comete o erro de ser aceito em uma bolsa de doutorado em Nova York e não comunicar a parceira. Ela descobre da pior maneira ao vasculhar o computador do parceiro atrás de respostas a partir de uma frase que ela escutou do amigo de Gonzalo: “Você vai conseguir resolver esse problema”. Presa nessa frase, ela parte em busca de respostas e descobre os planos de Gonzalo. Nunca havia mencionado a sua candidatura, o que culminou em uma série de brigas do casal e com Carla optando pela separação. Para ela, Gonzalo sempre pensou em ir sozinho, mesmo ele repetindo vezes e vezes que lógico que havia incluído sim todos na mudança. Carla repete diversas vezes a frase:

— Você não me falou disso porque quer ir sozinho.

Penso na atitude de Gonzalo enquanto leio esse trecho do romance. Será que Gonzalo se sentia de fato enclausurado dentro do casamento e de forma inconsciente queria mesmo ir sozinho e Carla soube exatamente ler os sinais ou Carla usou esse episódio como válvula de escape para separar de Gonzalo? Talvez Gonzalo ame mais Carla do que Carla ame Gonzalo. Existem medidas iguais dentro de um casal para o amor? Será que sempre um ama mais que o outro? Há equilíbrio?

Carla tomou a atitude de Gonzalo como uma traição. Mas é para tanto? Honestamente, não tenho resposta para essa pergunta e acredito que ninguém tenha. Somos meros observadores dessa família que nesse ponto do romance se separa, ao menos fisicamente.

A vida a dois para dar certo é praticamente uma união perfeita de energia, de simbolismo e, acima de tudo, abrir mão de parte de si pelo outro. Uma vida a dois exige entrega mútua, mas até que ponto abrir mão de quem somos por completo é válido? Em um ensaio sobre escrita, Haruki Murakami relata que vive com sua esposa por mais de 30 anos e não a conhece por completo. Quando li essa afirmação pela primeira vez fiquei confuso. Era uma afirmação lógica e ao mesmo tempo assustadora porque no fim revela que não sabemos e não conseguimos controlar o que está na cabeça do outro,

saber o que se passa na cabeça do outro. Carla podia ir por outro ponto, assim como Gonzalo, mas ambos, em seu íntimo, queriam um motivo para já não viverem mais juntos e sem coragem, muito mais Gonzalo que Carla, optaram por uma saída. Carla leu melhor a atitude de Gonzalo e tomou coragem, no fim ambos queriam o fim.

E com esse fechamento de ciclo chegamos à terceira parte do romance, intitulada Poetry in motion. Aqui o protagonismo se transfere a Vicente já na casa dos seus dezoito anos e a sua recusa de entrar na faculdade. Na trama nunca fica evidente o porquê de Vicente não querer entrar na faculdade, mas fica subentendido que o meio acadêmico retira toda a criatividade e molda o jovem ao seu sistema. Não é uma forma de pensar que seja condenável. De fato, as exigências de um estudo acadẽmico pode sim fazer com que deixemos a nossa criatividade de lado e nos moldarmos a um sistema pré-definido, com produções de teses e dissertações que poucos irão ler. Ou ninguém em alguns casos. E isso em troca do que? prestígio entre alguns?

Nesse ponto da trama Léon, pai biológico de Vicente, retorna com relativo destaque ao tentar restabelecer uma conexão com o filho ao tentar convencê-lo a entrar em uma faculdade. Essa relação desde o princípio se mostra desconexa e estranha. Gonzalo desaparece nessa parte do romance, em uma manobra clara de Zambra, que sabe do potencial do seu protagonista e do efeito que sua ausência causa no leitor.

Somos apresentados a personagem Pru, uma jornalista estadunidense que por uma série de acasos acaba parando no Chile e se relacionando com Vicente, apesar de ela ser uns doze anos mais velha que ele. Esse manobra do autor é importante porque nos tira da própria zona de conforto que nos colocamos ao acompanhar o cotidiano da família Gonzalo-Carla-Vicente, mesmo já desestruturada.

A partir daqui, me sinto jogado por Zambra dentro de um panorama literário chileno, principalmente da poesia chilena, agora também sob a ótica de uma estrangeira, Pru. Estamos no mesmo rumo, sob o mesmo ponto de partida e o nosso guia inicial nessa jornada é Vicente e seu amigo, Pato. Vicente e Pato mantém uma amizade que contém uma rivalidade velada de produção artística e de conhecimento e opiniões sobre poetas e obras. E dentro desse misto de acontecimentos está a formação de Vicente como leitor. Um romance de formação. Há aqui a formação de Gonzalo e Vicente. Vicente se torna leitor por instinto e muito por influência de Gonzalo, que agora é uma figura ausente. Interpreto a ausência de Gonzalo como combustível para o interesse de Vicente pela poesia, ao menos de forma inconsciente. Gonzalo, nessa parte do romance é uma figura que paira no imaginário do leitor. Aqui o centro é Pru, principalmente, que se propõe a escrever sobre o Chile e o que de melhor ele tem a oferecer: a poesia.

A referência é um ponto fundamental para o escritor, para o criador em si. Pauso a escrita desse texto e escrevo Scorsese na barra de busca do Youtube. Scorsese há poucos dias lançou Assassinos da lua das flores e

elogios e mais elogios surgem por toda parte. Coloco em um bate-papo do diretor com o ator Timothée Chalamet e ambos iniciam a conversa sobre um comercial que gravaram juntos e como uma película de Fellini foi fundamental para encontrarem a medida correta do material que produziram, de apenas sessenta segundos. As referências ecoam em todos os artistas. Sempre vai existir um ponto de partida. Não é diferente com Zambra em Poeta chileno. A parte Poetry in motion tem como referência quase explícita o romance Os detetives Selvagens, de Roberto Bolaño. E esse é um ponto crucial: o que fazer com a referência? Zambra pega a referência base de Bolaño e não o faz em forma de entrevistas e sim em um texto mais fluido. Vejo que a intenção de Bolaño é muito clara ao fazer o leitor montar o quebra cabeça mas ele tira de cena o entrevistador em si e com isso as suas angústias, medos e descobertas. E o caminho oposto é o que faz Zambra ao colocar Pru no centro da ação e a partir dela, com ela, acompanhamos a sua investigação, suas entrevistas, porque ela é o fio condutor dessa parte da ação.

As aventuras de Pru pela terra dos poetas ganham substância e humor. Mas esse humor está travestido de uma melancolia muito forte. Pru está desorientada, sua vida tomou rumos inesperados e isso a entristece na medida que a encoraja a tomar atitudes e atos antes não pensados por ela, como dirigir pelas ruas do Chile ou a voltar a fumar um cigarro. O romance nos oferece um encontro de Pru com Nicador Parra, mas que soa um pouco morno. Acho que essa era de fato a proposta de Zambra: na literatura não há

encontros como acontecem em outras áreas artísticas, pois é tudo muito silencioso, lento e triste. Escrever é um ato. Escrever ficção é um ato. Um ato solitário, digno, mas solitário. Vicente e Pru se afastam, Pru o mantém distante no início mas depois sente sua falta, sua ausência. Esse é um romance sobre a ausência também. Vicente percebe e se afasta. Pru se arrepende do seu ato. Por vezes só sentimos a importância do outro quando nos deparamos com a sua ausência. E é isso o que acontece com ela. Por que fazemos isso?

E assim a resposta que paira é respondida na quarta e última parte do romance: onde está Gonzalo? Sua solidão e seu regresso ao Chile, agora como professor universitário e seus anos em Nova York logo nos são expostos. Gonzalo agora é um ser solitário, mas contrariando o que seria o óbvio, Gonzalo se afeiçoa a sua solidão. Literatura e solidão. Tema recorrente e inesgotável.

E assim o tema central do romance se revela: a relação de pai e filho entre Gonzalo e Vicente. A última parte do romance se dedica a esse reencontro, após se verem após muitos anos em uma livraria em que Vicente trabalha, embora sem jeito, eles se reencontram. Gonzalo convida Vicente para assistir algumas de suas aulas e para surpresa de Gonzalo, Vicente aparece e o romance encontra o seu encaixe final justamente em um dia assim, comum, após uma aula de Gonzalo, em que ele e Vicente saem pela cidade. Vão em bares, livrarias, restaurantes. Conversam sobre a vida, sobre poesia, prosa, literatura é o foco. Gonzalo presenteia Vicente com um exemplar de A montanha mágica, Thomas Mann. Zambra sabe muito bem que esse romance trata da passagem do tempo e como ela ocorre de forma rápida e simultânea. O tema do romance também é esse: a passagem do tempo. Tempo, tempo, tempo. E assim termina o romance, como deve ser: como um fim de dia calmo e tranquilo, cotidiano.


Dias se passam depois da leitura do romance. Volta e meia penso na trama, revisito as minhas anotações e os rabiscos no livro que fui fazendo durante a leitura.

Quando comecei a escrever esse texto eu não tinha um plano exato traçado. Pego o livro Romancista como vocação, de Haruki Murakami e revejo algumas partes que circulei com uma lapiseira de ponta fina. Entre elas o parágrafo de abertura do capítulo 10, intitulado Para quem escrever?

“ Às vezes me perguntam: “ Você escreve os romances para que tipo de leitores?”. Eu sempre fico muito na dúvida sobre como responder. Desde o começo nunca pensei que escreveria para alguém, e até hoje não tenho essa consciência”

Essa passagem é curiosa assim como todo o restante do livro, porque afinal de contas o que representa escrever? e mais, no meu caso aqui em específico: o que significa escrever sobre um romance?

Pensava nisso e em outras coisas enquanto tentava acender mais um cigarro no pátio do bar fuga, no quarto distrito. Fiz um movimento de concha bem fechado com a mão e consegui acender o cigarro. Era uma noite fria e de vento gelado de véspera de feriado. Ao fundo, dentro do bar com pé direito alto, uma banda tocava Under cover of darkness, do The Strokes. Enquanto olhava a banda e a movimentação espontânea das pessoas pensei sobre a letra da música e até que ela fazia sentido para mim naquele momento. Deixo de pensar nisso parcialmente quando o Raul aparece com mais um chopp. Bebemos e fumamos.

— Terminei o livro do Zambra – disse

— E aí? Te falei que era bom, né

— Sim, sim. E muitas coisas ali vão de encontro com o que já vivi.

Bem ou mal eu já meio que fui padrasto também.

— Sim, eu também.

— E o jeito como ele melhorou e deixou mais leve a parte das entrevistas. Tipo, ele elogiou Bolaño, mas ao mesmo tempo disse: posso deixar isso aqui melhor.

Um pouco mais a frente um cara muito parecido com o Zambra estava numa roda de pessoas. Fumei mais um cigarro e disse:

— Olha aquele cara – disse – o maluco é a cara do Zambra. Raul olhou o sujeito e disse:

— Então é certo que ele tem problemas com o pai também.

Rimos. Problemas com o pai. Para quem entrar mais no universo do Alejandro Zambra vai ver que esse é um tema muito caro para ele. Penso no meu pai e como a nossa relação sempre foi muito boa. Meu pai sempre foi uma pessoa muito calma, um exemplo, na verdade.

Meu pai sempre foi um leitor por intuição, sempre me disse que na infância lia muito os quadrinhos do Tex e novelas de bangue-bangue e os tinha em grande volume. O colchão fazia uma volume no meio de tanto gibi que tinha embaixo, ele sempre diz:

O que mais gosto desses livros de western de bolso é a descrição. Tem os detalhes ali…

* * *

Só durante a faculdade eu me dei conta que a pessoa que mais gosto de falar sobre Literatura é com ele. Aos poucos, durante a minha formação, comecei a apurar o meu gosto literário e volta e meia indicava leituras para o meu pai. Assim, lemos e discutimos Dostoiévisk, Kafka, Carlos Ruiz Zafon, Saramago e muitos outros. Quando disse que não tinha gostado de Crime e Castigo eu fiquei intrigado e entendi, nesse episódio, que a Literaura é um sistema móvel e cada um a interpreta de uma forma, a entende para si de uma forma.

Temos um autor que admiramos muito em comum: Haruki Murakami. Foi meu pai que leu primeiro Kafka à beira-mar e quando terminou me disse, dias depois: é um livro muito bonito.

Um livro muito bonito. De fato, hoje ainda me sinto incapaz de falar muito sobre Kafka à beira-mar. É um desses livros raros e que uma das poucas coisas que nos resta é indicá-lo ao próximo para lê-lo. Agora, refletindo em retrospecto, percebo de que forma inconsciente, mergulhamos juntos na obra Murakami que lemos de forma alternada Caçando carneiros, Ouça a canção do vento e pinball, 1973 e ainda Crônica do pássaro de corda,que até hoje é o nosso ponto de discussão. Por vezes nos pegamos pensando em como esse romance é complexo e difícil de entender. “Por que ele ficou lá naquele poço por dias”, volta e meia ele repete essa frase. Em outro episódio, concordamos que em Meridiano de sangue, do Comarc Mccarthy é preciso colocar um balde embaixo do livro de tão sangrento e violento que é.

Foi com meu pai também que aprendi a simplesmente desistir de uma leitura que não está boa e aprendi isso através da sua naturalidade: “não tô gostando desse livro. Parei de ler, tem outro lá para indicar?” Aprendi a ter essa naturalidade. Não devemos nos submeter a aquilo que não gostamos, e isso vale para todas as áreas.

Assim que terminei o Poeta chileno de imediato o passei para o meu pai. No dia seguinte fui espiar em que página estava. 65. “Esse livro é bom e ele escreve de forma simples”. “E o que achou da reviravolta?”, perguntei. “Ele foi esperto, né? Não se atirou de cara assim, e a forma que ele descobriu como ela tinha um filho também foi bem inteligente”. Minha mãe ouvia a nossa conversa a poucos metros do sofá, intrigada, disse: “ Como assim? Como que ele descobriu?”. “Foi de uma forma mais delicada de ele observar o corpo dela, como se modificou”, disse. “Hum, acho que vou ler esse livro depois”, falou, sem tirar os olhos do telefone. Meu pai e eu rimos em cumplicidade, felizes pelo que minha mãe vai encontrar. Espero ter muitas e muitas conversas assim, informais, com o meu pai, não só sobre Literatura, mas também sobre a vida em si.

Finalizo esse texto hoje, sábado, 28 de Outubro. Vou à estante e pego o meu Crônica do pássaro de corda. É hora de uma releitura e quem sabe desvendar algum tipo de enigma. Eu não sou mais o mesmo quando li pela primeira vez esse romance. E será que ele continua o mesmo?

Leia mais do autor em Sepé.

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