BRAVA SERENA E ALICES DE ROBERTO, por Monique Rodrigues

Recomeçar. Essa é uma das tarefas mais difíceis da vida, porque recomeços implicam abrir mão do que já é seu. Significa abandonar a sua zona de conforto em busca de algo novo. Seja outro emprego, outro relacionamento ou outro lar, o fato é que recomeçar é encarar o novo, de novo.

Uma história de recomeços é o que nos apresenta o gaúcho Eduardo Krause, no seu romance Brava Serena, publicado em 2018 pela editora Dublinense, e atualmente na segunda edição. No livro, conhecemos Roberto Bevilacqua, um viúvo aposentado, de setenta e dois anos, que resolve mudar-se de vez para a Itália. Sozinho, sem nenhum vínculo que o prendesse mais ao Brasil, ele vai embora. E o motivo é bem especial: foi lá a sua lua de mel, quarenta anos atrás, e ele deseja relembrar os momentos que teve com a esposa.

O personagem, que também é a cara de Marcello Mastroianni (famoso ator italiano), encara o desconhecido se matriculando em um curso de idiomas, alugando um quarto numa pensão de estudantes, e enchendo sua mala de roupas e pílulas. Tudo o que ele almeja é passar seus últimos anos relembrando a felicidade que sentiu um dia, mesmo que, para isso, ele tenha que recomeçar a vida em um outro lugar.

Na Itália, Roberto Bevilacqua conhece Serena Felice, uma jovem que mora com a mãe na pensão em que os alunos do curso de italiano são recebidos, e onde ele também se hospeda. Serena conversa com todos eles – em várias línguas – e conhece muitas pessoas, como se ela própria fosse um pedacinho do mundo inteiro. Vivendo tudo intensamente, ela constrói um vínculo com Roberto, que se inicia com a língua portuguesa, e se estende para bem mais que isso.

Krause junta estes dois personagens completamente diferentes numa amizade improvável, do jeito que a boa literatura sabe fazer. E a vida dos dois vai se modificando de uma forma muito singular, através da amizade que eles tecem. A história é escrita com humor e ironia, e possui descrições que nos levam a uma viagem por sabores e lugares romanos, onde a massa e o vinho nos são entregues de forma quase palpável.

Outra personagem muito importante é Alice, a esposa já falecida de Roberto. A história é escrita em primeira pessoa, e Roberto é narrador-personagem, mas Alice é sua interlocutora. É como se ele fosse contando e dividindo com ela tudo o que vai lhe acontecendo, numa tentativa de ter algo já conhecido e seguro, em meio a tantas novidades da sua vida.

Assim, vamos sendo apresentados à história aos poucos, como se nós, leitores, fôssemos Alices de Roberto, segurando sua mão enquanto ele desbrava o mundo. E pouco a pouco, é Serena quem vai tomando esse lugar, ajudando-o a encarar essa aventura. Com o passar do tempo, o personagem vai fazendo uma transição entre a vida que relembra, e a vida que vive. E isso fica claro, por exemplo, quando ele começa a se permitir experimentar comidas típicas sem se preocupar com a dieta e com seus remédios.

Brava Serena é uma história de coragem e de bravura, como bem diz o título. Mas não é apenas Serena a corajosa que encara as experiências da vida. Roberto Bevilacqua, depois dos setenta anos, também enfrenta o desafio de recomeçar a sua. Ela, a jovem intensa; ele, o senhor experiente. Impossível não associá-los a Eros e Tânatos, que, juntos, têm força pra desejar e começar de novo, sempre que for necessário, mesmo que isso seja muito doloroso. Recomeços não são fáceis, mas zona de conforto é terra árida.

Monique Cerini Rodrigues é graduada em Letras-Português (FACOS-CNEC) e pós-graduada em Diálogos entre a Literatura e a História do Rio Grande do Sul (FACOS-CNEC). Estudante de Psicanálise. Gaúcha, artesã, e apaixonada pelos livros. Escreve resenhas e outros textos, e compartilha dicas de leitura nos jornais e rádio locais. Seu perfil no instagram é @moniqueeoslivros.

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