DE ‘CARANCHO’, de Rodrigo Tavares

Leia a seguir o capítulo 2 de Carancho,
novo romance de Rodrigo Tavares
publicado pela editora Diadorim.

Interior de Santa Vitória do Palmar
Janeiro de 1893
(capítulo 2)

Quando saiu de nossa casa, meu marido, Tarcísio Gutiérrez, estava inquieto, revisava os bolsos, entrava e saía do rancho, como se tivesse esquecido algo. Fazia de tudo para fugir do meu olhar. Encilhou o cavalo e mal nos deu atenção. Partia para a guerra pela primeira vez. Ele tremia quando escabelou Floriano, nosso pequeno. Essa era uma pequena brincadeira dos dois. Segurei a mão dele. Apertei firme e encarei seus olhos, enquanto acariciava a barba farta, salpicada de fios ruivos, querendo branquear.

Ele entendeu o que eu queria dizer: Tarcísio não podia demonstrar fraqueza, não por nós. Na nossa casa nunca existiram essas regras bobas, mas o viejo Guiraldes estava esperando. E nunca era bom demonstrar medo na frente de outro homem. Os gaúchos, apesar de sensíveis, são muito orgulhosos, e eu precisava ser a fortaleza de Tarcísio.

Enquanto segurava suas mãos, beijei seus lábios e desejei boa fortuna.

─ Até logo, Brida ─ disse e virou as costas.

Ele não tinha como saber o que eu sabia, e por isso se despediu daquele jeito frio, e eu não pude dizer nada. Não queria forçá-lo, não queria que ele tivesse que suportar mais um fardo. Saber o futuro não é uma bagagem leve para se carregar.

Que se fizesse guerreiro e que ficasse tranquilo, eu disse. Eu cuidaria do Floriano, da abuela, dos animais e da casa. Estaria esperando por sua volta, menti.

Tarcísio e o viejo Guiraldes se afastaram, nem rápido demais, para não matar os cavalos, e nem devagar demais, para não se atrasarem. O cavalo colorado do meu marido trotava constante, sentindo o medo do dono, que nem reparava nas vacas e nos bois que mugiam, nos outros cavalos das manadas, que se aproximavam deles, curiosos.

Homem pobre não tem opção, Tarcísio disse para mim, assim que recebemos a notícia. Ele sabia bem os termos daquele acordo com os caudilhos: nos tempos de paz, trabalharia como peão, poderia construir um rancho e um criar um pouco de gado, enquanto cuidava das terras do patrão; e quando fosse necessário, seria um soldado nas colunas de Gumercindo Saraiva.

Os estancieiros eram os verdadeiros senhores da guerra. Em suas propriedades, eram reis, com um exército de homens leais e agregados, prontos para qualquer ordem. Quem tem bons homens sob seu comando tem poder. Por causa disso, assim que receberam de um próprio o recado para que se apresentassem ao capataz da Estância Curral dos Arroios, encilharam os cavalos e pegaram a estrada rumo à propriedade dos Saraiva.

Pelo que o ajudante antecipou, Júlio de Castilhos tomou posse do governo do Estado do Rio Grande do Sul e em seguida começou o barulho. Os estancieiros do Sul do Estado opunham-se ferrenhamente aos ideais pregados pelo Presidente. Como todos os Federalistas, vinham sofrendo agressões e represálias dos homens de Castilhos, enquanto as autoridades faziam vista grossa. O chefe mandou que aniquilassem os inimigos, e os homens de Castilhos eram bons cumpridores de ordens.

Meu marido não entendia nada de política, jamais tinha ouvido falar dos princípios do tal Auguste Comte, que tanto se falava, não se importava se vivia numa república ou numa monarquia. Esses conceitos abstratos não significavam nada para nosostros – os do campo. Ele sabia apenas uma coisa: Júlio de Castilhos e seus soldados de lenço branco, os pica-paus, eram seus inimigos.

Tarcísio conteve o chapéu de pelo de lebre, de abas curtas, que quase voou de sua cabeça. Era presente do patrão Gumercindo Saraiva, que o achava muito parecido consigo mesmo. Tinham uma estrutura física semelhante, robustos como touro de invernada e o rosto alongado, meio equino, emoldurado por espessa barba negra. No entanto, diferente do caudilho, Tarcísio era apenas um peão campeiro.

O viejo Don Guiraldes observava Tarcísio com o canto dos olhos. Conhecia aquele sentimento de ansiedade, era um veterano de revoluções e guerras. Diziam que o velho castelhano já havia peleado pelo Uruguai, pela Argentina, e que, na Guerra do Paraguai, se enrabichou por uma chinoca que acompanhava a comitiva de Silva Tavares e por isso veio junto para o Brasil. Quando indagado, Guiraldes sempre contava uma versão diferente de sua vida antes de chegar ao Rio Grande, perdendo-se a verdade no meio de tantas bravatas.

Quando o mensageiro os convocou para a luta, nem precisou pensar, não tinha muito o que levar. Vestia-se como os gaúchos antigos: chambergo de aba tapeada sobre a farta cabeleira branca, xiripá de lã preso à cintura por uma faixa vermelha. Sobre a faixa, havia uma velha guaiaca com fivela; por baixo, longas ceroulas até o calcanhar, mas sem qualquer crivo ou franja mais festiva. Escondia a bainha simples sob a bota de couro curtido pelo suor dos cavalos.

Ainda faltava um detalhe: desemalou os trapos e encontrou, nos fundos da mala de garupa, o velho dólmã militar, que já havia algum tempo só utilizava em solenidades. Agora sim estava pronto para partir.

Meu marido não dividia a euforia com o velho. Trazia o semblante endurecido, vestiu pilchas simples, de bombachas puídas, camisa de linha branca e inteiriça, sem botões, e apresilhou um pala de seda nos arreios, seu único luxo.

Com as esporas ditando o compasso, partiram, sem olhar para trás. Tarcísio, bem montado em seu colorado, acompanhava o trote largo do lobuno do viejo, firme nos arreios. Tinha os olhos no horizonte, repassava tudo o que o soldado tinha dito a eles antes de partirem. O cavalo seguia o rastro do outro, sem precisar de qualquer comando.

─ Hay boatos de que Castilhos autorizou que seus correlegionários apertem o cerco, com a violência que for necessária ─ disse o mandalete, e completou: ─ Partam hoje mesmo para as casas do General Gumercindo.

─ Que mal pergunte ao amigo ─ Tarcísio abaixou o tom de voz ao falar ─: devo me preocupar por deixar eles sozinhos?

─ Dizem que as ordens do Castilhos são pra usar violência. Mas nós não somos ninguém, eles nem nos enxergam. Apurem essa partida, que até o Arroio são umas quantas léguas.

─ Ficou surdo ou está louco, hombre? ─ disse Don Guiraldes, estalando, na frente das vistas do outro, os dedos grossos como dois moirões ─ Donde andavas? Teu cavalo para no caminho e tu nem enxerga.

─ Estava pensando no que o homem do General disse. Espero que eles fiquem bem.

─ Não te preocupa. Eles estão armados. Teu guri já sabe mirar e atirar. Em compensação, nós precisamos chegar até a estância pra descobrir a quantas anda essa tal revolução.

─ Será que vai muito longe?

─ Que sei eu? Mas se der algum problema, tua família têm a balsa escondida e é só atravessar pro Uruguai. Vamos a galope agora que falta pouco…

Os cavaleiros costearam a Lagoa Mirim desde Os Afogados até a Estância. Estavam a menos de um dia de Santa Vitória do Palmar. Alguns capinchos se atiraram na água quando escutaram o tropel de cascos. Ao longe, um mergulhão emergiu com um peixe no bico. A brisa empurrava da água o cheiro agridoce da lagoa.

Tarcísio não viu nada disso. Os homens sempre têm pressa.

Rodrigo Tavares nasceu em Bagé, em 1986. Idealizador e realizador do FestFronteira Literária, é autor de Noite escura (2009), Andarilhos (2017) e Ainda que a terra se abra (2020).

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