Trecho da novela publicada pela
Boaventura Editora (Porto Alegre, nov/22).
(…)
Foi sem a desejada entrevista prévia com o Turco que o garoto compareceu à Chefatura de Polícia naquela quarta-feira à tarde. Como esperado, o pai exagerou nas recomendações quando estavam a caminho:
– Fala só o necessário. Economiza nas palavras. Só responde o que te perguntarem.
A repartição pública era acanhada e a saleta do delegado transbordava de móveis, grossas pastas de papel e, mais literalmente, da água acolhida em baldes e tigelas, em razão das goteiras que a irrigavam, aqui e ali. Um escrivão de dentes ruins postara-se defronte de uma máquina de escrever e o seu gordo e reluzente chefe degustava um café quente demais para seus lábios queimados de tabaco.
Cau repetiu o que lhes dissera antes na escola. Que Olga vestia, sobre o guarda-pó muito branco do uniforme, um cachecol vermelho felpudo. Levava aos pés umas meias de lã axadrezadas, protegidas pelo sapatinho preto lustroso, com um diminuto laço na alça de abotoar. O cabelo estava puxado para trás da cabeça por um aplique rosa, imitando borboletas. No seu-vizinho da mão direita – quarto dedo a contar do polegar, como explicou ao inspetor –, carregava um anel com uma única pedra vermelha. Brincos como se fossem de pérola nas orelhas, nenhum colar ou pulseira. A pasta preta envernizada estava livre de adesivos ou decalcos, ela jamais faria uma coisa daquelas com seu material escolar. Que ela, às vezes, escapulia às escondidas no recreio para comprar balas, sorvete seco ou puxa-puxa no armazém do outro lado da rua. Que no banheiro feminino, vez ou outra, passava batom nos lábios e riscava os olhos de preto.
Em duas ocasiões, o escrivão pediu-lhe para altear a voz, tão encolhido que o pequeno estava. O homem registrava no papel as suas palavras com exatidão, fazendo matraquear como metralhadora, eletrizando-o, a antiga máquina de escrever Underwood.
O delegado mostrou-lhe fotos de crianças desaparecidas e mencionou diversos nomes para ver se ele as conhecia, mas o menino nunca ouvira falar delas. Tampouco podia dizer-lhe o trajeto preciso que a colega Olga percorrera entre sua casa e a aula de piano, pois a encontrava apenas na escola.
Diante da atitude do delegado, o professor, curioso, perguntou:
– São mais de quatro crianças as vítimas do maníaco?
Mas ficou sem resposta. Cau estranhou que o pai, sempre tão cheio de si, desistisse de repetir a pergunta. Viu-o apalpar os bolsos à cata de cigarros e, contrariado, oferecer seu maço de Hollywood para os policiais, enquanto pedia permissão para fumar. Ao fim do depoimento, o professor quis saber ainda se havia suspeitos.
O delegado voltou-se para ele com seu semblante irônico e escarneceu:
– A cidade toda. Até o senhor… Dizem que comunistas gostam de criancinhas.
O menino agitou-se. O medo que sentira na noite anterior voltou-lhe com um calafrio. Espiou a reação do velho com o rabo do olho.
Diante da preocupação avaliativa do menino sobre o professor, o policial girou entre os dedos o cigarro que aceitara dele e disse, num rasgo desdenhoso de humanidade, apontando para a carteira de Hollywood no bolso do outro:
– Fica tranquilo, guri, teu pai não é suspeito. O bandido não fuma “Oliú”. Fuma Tufuma. Havia baganas perto da vítima encontrada no Parque Borowski.
– O Boleslau, do armazém lá da esquina, também fuma Tufuma – encorajou-se o depoente a informar. – Tava abrindo um maço quando fui comprar feijão, um dia desses.
O policial se levantou, encerrando a conversa:
– Meia cidade fuma Tufuma, guri.
– Vai lhe dar proteção agora? – inquiriu o professor, sinalizando o pequeno com a cabeça.
– De que jeito, homem? Se nós somos só três… – riu-se Evair. – Tive de pedir a ajuda dos guardas da prefeitura pra vigiarem o parque… Cuida tu mesmo do teu filho.
O escrivão sorriu, em corporativa solidariedade com o chefe, estendendo as folhas batidas à máquina para a assinatura do responsável pelo depoimento.
O professor tinha uma desconfiança tácita das forças policiais. Ao cumprir o ritual de assinar o depoimento, extravasou seu mal-estar, canalizando-o para a burocracia:
– Quantas vias!
O escrivão apenas o aguardou terminar, sem dizer nada.
Ao saírem do prédio, o delegado gritou da porta da Chefatura:
– Ele usa umas botas Sete Léguas iguaizinhas às suas, meu professor.
O pai voltou-se para o homem sarcástico, com fastio, mas outra vez se manteve calado. Retomou o passo, puxando o filho pela mão. Que diferente estava!
– Gente estúpida! – o menino ouviu-o reclamar, a meio quarteirão, à suficiente distância do delegado.
Cau também ficara desconfortável com o jeito dos policiais. Sentiu-se aliviado por ter cumprido bem o seu papel, medira cada palavra dada em seu depoimento, da forma como lhe pedira o velho, mas temia por Olga. Ficara evidente que a polícia estava sem pistas do criminoso, e que, ainda por cima, eram poucos os investigadores disponíveis para resolver o caso.
– Que vai ser da Olga, pai? – interrogou-o, angustiado.
– A depender dessa gente, vai-se saber… – resmungou ele.
À tardinha, o garoto cruzou meia dúzia de quintais, até alcançar pelos fundos o sobrado do Turco na rua transversal. Queria vê-lo para buscar as respostas de que precisava para se tranquilizar.
Ansioso, repetiu a pergunta que o perturbava ao caixeiro-viajante, que voltara de suas andanças pelo interior com seu barulhento e empoeirado Studebaker marrom ainda carregado com os rolos de amostra dos tecidos coloridos que vendia pelos fundões das colônias.
– Que vai ser da Olga, Turco?
Nazir Cury, ou talvez Nazir Adib, ou Nagib Farid, ou ainda Salim Mansur, ou outro nome qualquer pelo qual o comerciante sírio-libanês ficara conhecido nas cidades onde trabalhara, e que adotara o conveniente apelido de Turco, para conviver em harmonia com suas múltiplas identidades, recebeu-o sentado à mesa no centro da cozinha. Vestia um blusão largo, com falhas nas costuras laterais e buracos redondos à altura da barriga feitos por brasas de cigarro caídas no correr de suas viagens. Suas roupas exalavam um cheiro forte de fumaça e de suor antigo. Aparentava cansaço e as suas vistas derramavam um brilho anormal. O Turco tomou um novo gole de sua cachaça e respondeu com loquacidade incomum, em volume acima do tom:
– Essa polícia aí, Cauzinho, só pega ladrão de galinha. É tudo um bando de burocratas, que só enxerga o que pula na frente deles. Não são pessoas inteligentes, como você ou eu – exclamou, pousando os olhos cristalinos nos do menino. – Se esse maluco se mantiver nas sombras, vai passar batido – recomeçou. – Eles dizem que são quatro crianças, né? Mas há quem diga que muitas outras sumiram em anos anteriores e seguem desaparecidas.
Tomou um gole largo de sua caninha e ficaram os dois em silêncio.
– Mas então… – retomou o garoto.
– Tenho pena da tua namoradinha, guri. Acho difícil que a encontrem.
Cau empalideceu e baixou a fronte.
– Isso é coisa que se diga, Turco! – repreendeu-o Soraia, que antes cozinhava silenciosa à beira do fogão à lenha.
O homem meneou a cabeça e tentou se corrigir. Abraçou de súbito aquele aflito fiapo de gente e os dois ficaram aconchegados assim, balançando-se por um tempo.
– Me desculpa, compadre, tô meio pessimista hoje.
Puxou o topete do vizinho e apertou-lhe as bochechas, agora mais rosadas pelos beliscões.
– A única coisa boa disto tudo, Soraia, é que a polícia se mantém ocupada – falou o caixeiro-viajante. – Talvez seja hora de levantar acampamento.
A esposa franziu o cenho, com visível preocupação. Fuzilando o companheiro com o olhar, disse taxativa:
– Vamos parar com esse assunto? Acho bom parar também com essa caninha! Já bebeu demais.
Um silêncio pesado tomou conta da peça.
– Quer jantar conosco, Cauzinho? – ofereceu a mulher, quebrando o gelo.
– Não, obrigado – respondeu ele, sem entender bem a razão da interrupção abrupta da conversa. A esposa do caixeiro-viajante sempre lhe parecia meio irritada, meio nervosa.
– Vou preparar uma sopinha de ervilhas – insistiu Soraia. – Quer comer com a gente?
– Minha mãe não quer que eu incomode – disse Cau, levantando-se resoluto de sua cadeira.
Deu um longo abraço no amigo Turco e se dirigiu à porta de saída.
– Aqui tu nunca incomodas – ele disse.
O menino deu um sorriso encabulado:
– Vou pelos fundos – anunciou, enrolando a manta no pescoço.
Esfriara bastante. Chegara àquela hora melancólica do lusco-fusco, ao final das tardes, em que o cansaço e as tristezas parecem dominar o mundo, mas uma estranha sensação fazia o seu corpo vibrar como as cordas de um violão. A conversa com o Turco materializara na cabeça do menino as impressões com que saíra da rápida entrevista na delegacia: aqueles sujeitos não iriam salvá-la. Sentia uma forte apreensão pelo destino da colega, mas, ao mesmo tempo, uma desconhecida serenidade. Voltava mais animado, parecia flutuar. Era injusto o que sucedia a ela. E por isso, a costumeira falta de coragem que o caracterizava parecia perder a relevância. Era preciso fazer alguma coisa além do que já fizera para salvar Olga. Antes, o faria por amor. Agora, também por necessidade. (…)
Miguel da Costa Franco é autor de “Imóveis Paredes” (romance), “Não Romance” (contos), “A filha do Dilúvio” (romance) e “Os Heróis do Parque Borowski” (novela); Roteirista do curta-metragem “O último desejo do Dr. Genarinho”; Corroteirista do telefilme e da série de tevê “Doce de mãe” e do longa-metragem “A filha do Dilúvio”, em captação de recursos. Colaborador no roteiro do longa-metragem “Aos olhos de Ernesto”.


