É PESADO ESSE BALDE, CHICA, por Nelson Rego

Publicado originalmente no livro
“Daimon junto à porta”, pela Dublinense
Vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura
para o melhor livro de contos, em 2011

1.

Quando a vovó lhe diz “vai ao poço, hija, traz um balde d’água” (assim mesmo, a abuela uruguaia lhe chama de filha), a menina vai correndo, a velhinha não tardará a tirar os pães do forno e a colocá-los cheirosos sobre a mesa, a água é para ferver e preparar o café. Desce correndo a coxilha e sobe a outra. A vovó fica à janela, gosta de ver a neta com as trancinhas ao vento, voando, de tão rápida que corre. Do poço, a menina abana para a avó, que volta à cozinha para cuidar dos pães. O retorno será mais lento, com o balde cheio. Ainda assim, a gula apressará os passos. Não gosta de deixar a abuela sozinha e quer voltar logo para a mesa dos pães cheirosos. A cacimba é de água muito clara, tão cristalina que dá para avistar, lá no fundo, uns peixinhos transparentes. De onde vêm esses peixinhos? Como podem viver dentro da cacimba? Já perguntou isso para a vovó, que não soube responder. “É assim, hija, é assim, vivem lá dentro porque a água é boa”. Nadam no céu azul e nas nuvens brancas, os peixinhos. No poço, o céu fica tão fundo.

 2.

“É pesado esse balde, chica”, diz a carranca que apareceu de repente flutuando no céu fundo. O susto faz a menina deixar o balde mergulhar no poço, enquanto se vira para olhar o homenzarrão, que ri, quase gargalha. Alguma coisa nesse riso mete medo na menina. “Eu puxo esse balde pra ti, chica” e, num instante, o homem movimenta a roldana e alça o balde cheio que, suspenso por sua mão, parece leve como um copo d’água. “Onde é a tua casa, chica? É aquela? É aquela lá, chica? O que foi, perdeu a língua?”. A gargalhada do homem aperta o coração da menina e lá, na outra colina, nenhum sinal da vovó aparecer na janela. “E, então, é ou não aquela a tua casa? Vou levar esse balde pra ti”. Ela permanece em silêncio, mas o homem sabe que aquela é a sua casa. “Vamos”, ele ordena, mas não desce a coxilha em direção à casa, e sim para o lado oposto, em direção à estradinha de terra que serpenteia aos pés das colinas. “Vamos”, repete o homem com uma entonação autoritária, porque a menina permaneceu junto ao poço. Ela gostaria de correr, mas as pernas parecem pregadas no chão, e o homem, em duas passadas, iria alcançá-la. “Vamos, chica, esperam por esse balde na tua casa. Não foi tua madre quem te mandou buscar água? Vem, vamos”. A menina desce a colina, acompanhando o homem, a casa da avó desaparece de sua vista. Ainda bem que, chegando à estrada, é na direção da casa que o homem se põe a trilhar, mas é mais longo voltar pela estrada tortuosa do que descer correndo uma coxilha e subir outra.

O caminho é deserto, as sombras das colinas alongam-se sobre ele. O homem anda devagar, parece caminhar cada vez mais lento. Olha para um lado e para o outro, como se estivesse a verificar se vem alguém pela estrada. Leva o balde à boca e faz descer pela garganta os goles d’água. “Mas que bosta! Que bosta é essa na água?”. Encosta a alça no rosto da menina, que vê um peixinho transparente na água, menor do que seu dedo mindinho. “Que bosta é essa, chica? Essa bosta me tocou na boca”. O homem faz menção de arremessar o balde. “Não! Essa água é para a minha vó”, pede a menina, e o homem ri. “Então, tu fala, hein?”. Ele repousa o balde sobre a terra e senta-se num tronco caído. Tira do bolso, por baixo do poncho, um palheiro, demora-se em preparativos para fumá-lo. A menina segura esperançosa a alça do balde, mas não chega a levantá-lo. “Deixa esse balde aí, chica teimosa, já falei, vou levar pra tua vó”. O homem fuma devagar. Um lado do céu está vermelho. No lado oposto, escuro, aparece a primeira estrela. Esfria.

A vovó deve estar preocupada à janela, ou terá saído pelas coxilhas em busca da neta. “Então, vai levar água suja com peixe pra tua vó, chica?”. Uma baforada. Outra. “Vou tirar essa bosta daí”, anuncia o homem já com a mão em concha dentro do balde.

“Não, depois eu tiro ele daí”.

“Como é que é? Não é pra tirar essa bosta do balde?”.

“Eu levo ele para casa. Depois, eu ponho num copo”.

“Como é que é, chica? Vai pôr o peixe num copo? E pra quê?”.

“Depois eu levo ele de volta para o poço”.

A menina não entende o que o homem achou tão engraçado. Fica é cada vez mais angustiada por ele estar gargalhando, gargalhando com a cara virada para o céu anoitecendo, gargalhando e repetindo “vai pôr num copo”, com a boca escancarada e vibrando, olhos fechados pelo riso, “vai levar a bosta de volta pra o poço”, gargalhando sem fim. Cessa o riso de repente. Olha para a menina como quem olha para o nada e ainda dá um riso entrecortado, enquanto murmura “vai levar a bosta de volta para o poço, num copo”. Depois se aquieta, torna a sorver o palheiro. “Senhor, tenho que voltar para casa, minha vó precisa de mim”. Pressente que ele nada responderá até terminar o palheiro. Poderia tentar ir sem o balde, mas adivinha que isso também ele não permitirá. O resto de luz vem da última mancha vermelha no horizonte, por trás da colina. O palheiro está chegando ao fim.

Há uma súbita expressão de contrariedade no rosto do homem. A menina olha para onde ele olha e vê um vulto se aproximando. É outro homem. Semelhante ao primeiro, mesmo tamanho e vestes, mesmo jeito pesado de andar. Ela o reconhece. Viu esse homem algumas vezes na cidadezinha. Ele sempre lhe deu medo. Ouviu as pessoas comentando que é um degolador, carrasco dos vencidos nas guerras. Nos dois lados da fronteira, evitam olhá-lo de frente. “Buenas noches”, diz o matador chegando. “Noche”, retruca o homem sentado sobre o tronco, terminando o palheiro. Encaram-se, os dois, sem que o caminhante interrompa os passos. Parecem se conhecer, fica em dúvida a menina. O caminhante prossegue. Vira-se, uns passos adiante, olha para a menina e novamente para o homem. Depois continua, vai na mesma direção que leva à casa, mas, na bifurcação, toma o caminho oposto. Desaparece na curva por trás de outra coxilha. O homem sentado sobre o tronco sorve pela última vez o palheiro. Permanece calado. A mancha vermelha no céu desapareceu, ele continua pensativo. “Toma o balde, chica”, ele o alcança para a menina. “Leva pra velha”. Nunca o balde pareceu tão pesado, nem tão lentas suas pernas. Gostaria de ver o peixinho na água, mas no escuro não consegue. A outra vertente da estrada margeia a colina onde fica a casa, a menina já fez a curva e avista o rancho. Há uma luz fraca de lampião saindo pela porta, enxerga a velha andando aflita pela frente da casa. A menina solta o ar engasgado, sente-se outra vez leve, consegue aligeirar os passos. Ainda escuta ao longe, lá para trás, a voz do homem gritando para a noite “tem sorte esse peixe, chica, tem sorte”.

Nelson Rego escreveu “A Natureza Intensa”, livro de quatro contos interligados, finalista do Prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores, em 2016; “Noite-Égua”, novela; “Daimon Junto à Porta”, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura para o melhor livro de contos, em 2011; e “Tão Grande Quase Nada”, livro de biografias ficcionais. Autor de nanocontos, aforismos e outros textos sintéticos, publicados em coluna semanal no Jornal Sul21, de 2014 a 2016. Cursou Filosofia e Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é mestre em Sociologia e doutor em Educação. É professor na UFRGS e autor e organizador da coleção de livros “Geração de Ambiências”, publicada pela Editora da Universidade. Os livros da coleção reúnem apresentações e análises de práticas que unem a Geografia à criação de pedagogias ao mesmo tempo críticas e prazerosas em educação formal e não formal. É também autor e organizador de livros acadêmicos publicados pelas editoras Grupo A/Selo Penso, Edelbra, e por meio de convênio entre a UFRGS e a Universidade do Minho, Portugal.

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