A funerária só levaria o caixão até a entrada do cemitério. Faltava acertar os serviços internos, o coveiro, a foto na lápide, os dizeres, essas coisas todas, mas urgente mesmo era alugar o carrinho que faria o traslado até o túmulo. O ambiente era familiar, eu já havia estado lá outras vezes. No enterro de um tio, de um primo, de uma prima, de uma amiga. Tantas vezes. Lembrava bem da entrada, um portão grande de ferro preto, túmulos em tons acinzentados e o chão coberto por uns pedregulhos minúsculos.
Decidi ir andando. No caminho, me distraí. Vi um pé de romã pendendo para fora de um muro. Estava com poucas folhas, eu podia ver nitidamente as frutas. Bem ao alto, uma se destacava pelo cor-de-rosa escuro, estava pela metade, a outra parte tinha sido comida por algum passarinho. Fiquei com água na boca. Ri ao ver que o felizardo deveria ser um sabiá que cantava alegremente na ponta de outro galho. Parei um pouco para ouvir o canto e apreciar a cena.
Segui e, quando me dei conta, estava dentro de um shopping. Todos usavam máscara, só eu não. As pessoas me olhavam com indignação e censura, o mundo inteiro estava usando máscara para minimizar a contaminação, menos eu. Fiquei muito constrangida, estava perdida, parecia um sonho, daqueles em que a gente se vê sem roupa ou sem calçados num lugar público. Intimidada e olhando para o chão, fui logo procurar uma farmácia. Entrei na primeira, não tinha mais máscaras. Na segunda, tampouco. Na terceira tentativa, consegui, comprei logo uma caixa para não passar por aquele tipo de situação outra vez.
Estava cansada, já caminhava há algum tempo. Fui até a praça de alimentação, comprei água, sentei, tirei a máscara e levantei o olhar. Na mesa em frente, um homem grisalho, de olhos azuis e com o maxilar bem marcado, sorriu para mim. Respondi com outro sorriso. Ele se aproximou, mantendo o distanciamento permitido, e puxou assunto. Contou que era do norte da Europa, que estava aqui a trabalho e que gostava muito do Brasil. Não via a hora de poder viajar livremente pelo litoral, gostava de mergulhar, navegar, surfar. Era um homem das águas, se definiu. Seu olhar emanava vida, alegria, encantamento. Falou mais um pouco, era radiante, otimista. Perguntou sobre mim. Eu? Levei um susto, nem lembrava mais quem eu era, nem o que fazia por ali: máscaras, shopping, sabiá cantando no galho, cemitério. Gaguejei, as palavras não saíram como eu gostaria. Lembrei que precisava alugar o carrinho. Disfarcei, olhei as horas e fui embora. Tive vergonha de contar que precisava enterrar meu pai.
Lúcia Nogueira Leiria nasceu em São Francisco de Assis, RS. É graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutora em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foi professora na graduação e na pós-graduação em instituições da rede privada de Porto Alegre. Ministrou Português e Cultura e Literatura Brasileiras na Universidade Ëtvös Loránd, em Budapeste. Atualmente é professora de Linguística no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande.


Esses sonhos da época da pandemia inspiraram esses belos contos. Parabéns.