O meu amor foi deixado ali, para morrer. Eu sei. Eu estava lá. Depois de outra cirurgia de amputação, com menos de quarenta e oito horas na CTI – não tem mais indicação de permanecer aqui – mandaram-no para o quarto. Nao retornou para a ala da cardiologia junto aos outros infartados. Quando percebi, tinham levado sua maca para o andar da neuro, no setor mais antigo do hospital. Havia um pé direito alto como nas igrejas com suas janelas arredondadas na parte superior, viradas para o poente. Ao “escanear” o lugar, ficou óbvio uma infestação de cupins: Rente às aberturas desgastadas, e pelos cantos, via-se aquele indefectível farelinho que dizem ser o cocô do bicho.
O q tinha de bom era a proximidade com a cafeteria e a capela. Fui tantas vezes à capela naqueles dois meses… Eu esperava q as pessoas saíssem, aos poucos; elas e suas aflições e o que eram capazes de prometer para aplacá-las. Eu esperava ter o espaço só para a minha aflição, num silêncio solene e penumbroso feito a órbita de um astronauta colocava-me diante de Deus, inclusive para barganhar..
– Para! Para, por favor! Olha só… esta narrativa…está pesada demais!
Samuel interrompe minha leitura. Sua crítica ao conto q eu construíra para a oficina de literatura, e mostrava a ele, surge impiedosa, cirúrgica, mas honesta:
– Afinal, por que falar tanto sobre o que já está sendo dito? Precisas trabalhar tua subjetividade com exatidão sem abusar das palavras.Traz o teu singular. Nada de preguiça, hein?
Já era noite qd saímos do velho Café Parry. Quase ninguém mais o frequentava.
Paramos na porta para colocarmos nossas luvas e gorros e Sam suspirou olhando a Avenida vazia. Penumbrosa como a capela de um hospital. Com suas cicatrizes de anos de agressões e abandono, a Farrapos sucumbira (feito a Voluntários da Pátria, décadas antes) às sucessivas crises econômicas, à visão empresarial estreita e ao poder político sem talento, incapazes de superá-las.
O conjunto de prédios descarnados parece um cemitério na entrada da cidade.
A Farrapos fora um cartão de visitas; Com o tempo, virou um lugar fantasmagórico.
– Olha pra isto! – ele aponta com o queixo – as rachaduras prenunciando a queda dos rebocos e o miolo exposto das paredes; a maioria do comércio de portas fechadas, que barbaridade! E arrematou: Pra ir à rodoviária a gente tem que cruzar pela comunidade dos walking deads, nas bordas da Volunta. Ali se encontra a chave mestra para a porta do inferno que é a tal da “pedra”!
Samuel havia crescido na Conde de Porto Alegre num tempo em q era solene a hora do chimarrão. Em seus olhos verdes agudos, enquanto ele refletia alto, vi o menino q amava aquela parte da cidade:
– Houve uma época linda quando até as garotas de programa tinham estilo. Dava gosto de ver, vagalumes nas calçadas, em meio ao colorido dos neons. A magia andava de mãos dadas com o prazer entre as casas noturnas e os hotéis, recebíamos gente de todo o país, um comércio excepcional…Como foi que deixaram chegar à completa decadência o portal da cidade, dos negócios e da alegria oferecida a quem quizesse? Por que ninguém fez nada?
Depois de um breve silêncio, seus olhos assumem uma expressão jocosa e se espremem como para ajustar bem o foco, mirando nos meus:
– Algo maligno tomou conta deste lugar! E permanece vampirizando a beleza da capital gaúcha… Tu já reparaste que agora ataca parte da avenida Cristóvão Colombo, em direção ao centro da cidade? E arrematou:
– Como dizia Ernest Hemingway, o mal é a pedra. A pedra bruta. O bem? É lapidar.
– Humm… Hemingway dizia isso, é? …Mesmo?
Sam fez que não ouviu minha provocação. Quase podia vê-lo sorrindo, secretamente, entre o canto da boca e o coração. Ele sabe que eu sei que ele cria repentes de histórias; qualquer papo nosso, do mais “cabeça” ao total escracho, acaba com alguns adornos inventados por ele.
Assoviou esfregando as mãos, levantou a gola do casaco para proteger as orelhas e passou o braço pelos meus ombros. Então, mergulhamos na escuridão gelada. Luar e garoa como nos filmes noir: Uma só luzinha pálida acetinada de transparência úmida.
Eu nem o desmenti, como de hábito. Tudo o q importava enquanto a noite crescia em torno de nós era que ele permanecesse ao meu lado. E o calor do seu corpo junto ao meu.
Myrian Beck foi ghost writer por mais de duas décadas, produzindo discursos, relatórios, palestras e artigos jornalísticas. É formada em Filosofia pela PUC/RS, com especialização em Axiologia, e servidora concursada do Senado da República. Participou da Antologia de Poetas Contemporâneos do Rio Grande do Sul e por alguns anos publicou semanalmente contos no site Via Política, livre informação e cultura. Myrian fez da escrita um oficio que a projetou na área de comunicação no meio político e que a consagra no meio literário, como contista e poeta.


Beleza de texto!
Alma ferida,sangra e transforma o real em pura poesia!
Parabéns pelo talento e texto enxuto de beleza comovente!