LIBERTA, por Maria da Graça Rodrigues

Trabalho escravo, Mariana? De onde tiraste isto, menina? Não, Mariana, por favor, não me faz passar uma vergonha dessas, tudo o que temos é graças à Dona Vera e ao Doutor Coelho, minha filha. Não vou assinar nada, Mariana, podem me chamar de tudo, menos de que eu seja uma pessoa mal-agradecida.

Não quero nem saber pra que serve essa papelada toda e de onde foste tirar esse monte de asneira. Logo agora, Mariana, que a dona Vera está uma pilha de nervos com a morte do doutor Coelho e a coitada sabe que os filhos são uns boa-vida preguiçosos que só prestam para gastar dinheiro em farras. Nenhum deles dois vai cuidar de um monte de campo, gado e plantação.

O que temos que agradecer? Tu me perguntas o que temos a agradecer? Mas olha, pensa um pouco criatura o que seria de nossa vida não fosse essa gente. Que obrigação a dona Vera e doutor Coelho tinham de me tirar lá da miséria que eu vivia com a Vó Maria? Tu hás de lembrar bem das vezes em que dona Vera nos deixou ir visitar tua bisa lá em Santaninha? Tu te apavoravas com tudo. E aquela vez da chuvarada, a gente correndo com bacia e balde para aparar a água que entrava por todo lado inundando a casa porque o telhado era um zinco velho crivado de furos. Não conseguiste dormir durante toda a noite, lembras? E pra te dizer bem a verdade, eu também me assustei, parecia que a todo momento as paredes iam sair voando e o pior era ver a água do rio chegando e chegando cada vez mais perto da porta de entrada. E nem era uma tempestade, só uma chuva normal, mesmo assim o casebre inundou todo. Vovó quase não falou comigo daquela vez, segurava minhas mãos e chorava, pedia perdão por não ter me cuidado como deveria, por ter me mandado para a casa de estranhos. Acho que naquela vez sentiu que a gente nunca mais ia se ver. Logo partiu, acho que dali a uns meses. É, descansou enfim. Coitada, que culpa tinha se não podia sustentar a mim além daquela filharada toda. Mas morreu achando que errou em não ter alertado minha mãe quando a boba começou a sair com o canalha do meu pai. Ora, se um rapaz branco ia querer algo sério com uma preta pobre. O resultado foi o pior de todos, uma filha morta na mesa de parto e uma órfã pra criar.

Lembra, Mariana, que dona Vera sempre dizia e repetia, “Lurdes e Mariana são como se da família fossem, até sentam à mesa conosco no almoço.” O que tu vês de maldade nisto, minha filha. Certo, num ponto tens razão, quando recebiam visitas eu ficava na cozinha, mas era em função da lida que aumentava, a comida tinha que ser servida nas travessas de porcelana, a bebida nas taças de cristal e eu não podia me dar ao luxo de sentar com aquele povo todo, até porque eu nem saberia me portar direito com gente fina que falava em política, viagens e jogos de tênis e golfe.

Salário? Não, Mariana, sabes bem que nunca me pagaram salário-salário, isto é verdade, mas a dona Vera seguido me alcançava uns trocados e eu saía a comprar uma coisinha bonita para ti, minha filha, como podes não valorizar isto?

E algo que nunca deves esquecer, Mariana, eles te deixaram estudar, filhinha, terminaste uma faculdade, te dás conta disso? Certo, eles nunca gastaram um tostão em colégio ou livros pra ti, mas te davam liberdade pra ir pra escola, coisa que eu só pude fazer até o quinto ano do primário, sabes bem.

Se eu gostaria de ter continuado os estudos? Ô, saudade. A professora me adorava, dizia que eu também poderia um dia dar aulas, pois escrevia certinho e não errava nas contas, ela queria que eu fizesse o exame de admissão pro ginásio, mas aí aconteceu o que tu sabes, dona Vera teve os guris e eu me vi obrigada a ajudar no cuidado com eles e não demorou muito tu chegaste ao mundo também.

O quê? Descobriste quem é teu pai? Por favor, minha filha, que maluquice foste inventar agora, Mariana! Pelo amor de Deus, filhinha, tem coisas que é melhor deixar quieto, consegues te dar conta disto?

Não entende e nem quer entender? Pois vou te dizer, uma coisa, minha filha, escuta bem, se haverá pessoa que podia se incomodar com a situação seria dona Vera. E ela que sempre soube de tudo nunca me apontou o dedo, nunca me jogou uma palavra dura e às vezes até me ajudava a te cuidar, te pegava no colo quando me via cansada de tanto trabalhar.

Exploradora? Chamar de exploradora uma pessoa que sempre nos tratou como gente? Nos deu casa, comida e roupa? Claro, roupas usadas, mas não fosse isso a gente ia andar maltrapilha por aí, pensa nisso.

Diversão, passeios? Se eu lembro de ter feito passeios na vida? Ora se pobre tem lá direito de ficar pensando em folguedos, Mariana. Há que dar graças a Deus por não sentir fome e nem frio, o resto é tudo bobagem.

E deixa de ser ingrata, a gente se divertia às vezes, sim, esqueceste dos dias de verão que nos levavam pra estância junto com eles? Até a cavalo nos deixavam andar. E os piqueniques na sanga, então, coisa bem boa, as tardes inteiras se refrescando e comendo bolos e pastéis que eu fazia e colocava nas cestas de vime. Se eu gosto mais da estância que da cidade? Pois olha, gosto da paz campo, o mugido do gado, o canto do galo de manhã cedo. Pra falar a bem da verdade, gosto muito de lá sim.

É, Mariana, tens razão, lá eu me sinto liberta.

Se eu gostaria de viver lá na estância?

O quê? Um pedaço daquele campo imenso será nosso? De onde tiraste isso, Mariana? Esse papel aí comprova tudo?

Queres que a dona Vera tenha um ataque do coração, Mariana? Não, eu não posso incomodar a coitada com uma notícia dessas, minha filha, não mesmo. Fala baixo, ela está acordando, vou lá levar o café no quarto.

Tu mesma vais levar o café e as notícias pra ela?

Mariana, minha filha, eu não quero nem estar por perto pra ver esta cena.

Eu devo sair e dar uma volta? Quem sou eu pra sair logo hoje que é domingo, dia que esta casa vai encher de gente e eu ainda tenho que aprontar o almoço.

Vamos almoçar num restaurante? E eu lá sei entrar num restaurante, Mariana?

Maria da Graça Rodrigues nasceu em Uruguaiana (RS) em 20 de dezembro de 1954. Iniciou o curso de medicina veterinária na PUC em 1975 e o concluiu em 1978. Em 1980 ingressou no Banco do Brasil na carreira técnico-científica. Especializou-se em Literatura Brasileira pela UFRGS em 2008. Obras publicadas: Helena de Uruguaiana, editora Dublinense (2010); Lua Castelhana, editora Movimento (2012); Paraíso Selvagem, editora Movimento (2014); 4-3-3 e o porteiro do estádio, editora Movimento (2014). Lançamento da segunda edição do romance Helena de Uruguaiana pela editora Movimento (2015) e A primeira pedra, editora Movimento (2016).

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *