Por Meire Brod
Escrever uma biografia demanda um grande esforço. Serão necessárias pesquisas, entrevistas, depoimentos, busca e checagem de documentos que corroborem com as informações e uma série de outros detalhes que irão ajudar a reconstituir com a máxima veracidade dos fatos a vida e a obra do biografado. Entretanto, como falar de um personagem real, com relevância dentro do cenário e da sociedade em que viveu, mas que, de uma certa forma, teve sua existência apagada?
Esse foi o ponto de partida para a jornalista e escritora Laura Peixoto, ao escrever Malvina (Ed. Libélula, 2023), a partir de uma provocação de um amigo e descendente da personagem ao sugerir que a autora pesquisasse sobre sua parenta no Google, o que Laura fez, imediatamente. Julia Malvina Hailliot Tavares, primeira professora estadual e a primeira com turma mista, na colônia de São Gabriel aparecia na busca do navegador. Malvina nasceu em Encruzilhada do Sul, em 24 de novembro de 1866 e era filha de imigrantes franceses. Como educadora, exerceu influência na sociedade rural além dos limites da sala de aula. Sua forma de ensino seguiu a pedagogia libertária, associada às primeiras organizações proletárias. Apesar de a ferramenta de busca apresentar uma breve descrição de seus feitos e da sua possível notoriedade e importância social e política à época, havia ali uma grande lacuna a ser preenchida.
A investigação de fatos históricos faz parte do processo criativo de Laura Peixoto. Para o trabalho de reconstituição, além de jornais da época, a autora nutriu-se também do diário, um manuscrito de Malvina, que o chamava de “Caderno de assentamentos”. Em meses de pesquisas, entrevistas e depoimentos obtidos de pessoas próximas e da família (o jornalista e escritor Flávio Tavares, neto de Malvina, foi um dos entrevistados), Laura entendeu que não havia documentos concretos que atestassem a veracidade de tudo que era dito sobre a educadora. Mas uma coisa era certa: vários de seus alunos mais tarde se tornariam militantes anarquistas e professores, em grande medida inspirados nos ideais de educação libertária a qual se filiava a professora. Esta geração de militantes nutriria um sentimento de grande admiração por Malvina. Foi aí que a escritora decidiu recorrer à ficção para contar a história de Malvina.
O romance resgata parte da vida da professora e ainda cria um delicioso cenário de uma Cruzeiro do Sul antiga, anteriormente chamada de São Gabriel. O motivo de Malvina ter saído de uma cidade maior e vindo para um fim de mundo é uma especulação com tom de fofoca. Em determinado momento, Júlio de Castilhos a transfere para São Gabriel de Lajeado, no Vale do Taquari. A lenda familiar fala em represália política, sem explicar o porquê.
Ainda assim, pouco se sabe sobre Malvina. Há um apagamento da sua trajetória. Na cidade de Cruzeiro do Sul, os mais antigos apontam a casa onde a professora morou, mas não é consenso. Não foi possível resgatar uma biografia com tão poucos indícios históricos sobre Malvina Tavares. Mas foi possível criar uma ficção, um romance histórico, trazendo sutilmente personagens que existiram, os eventos e histórias reais daquela época, pesquisados para esse livro. O intuito é revelar para as gerações de hoje a existência dessa mulher, dessa professora, que viveu durante 40 anos num lugarejo que até hoje continua pequeno, mas cuja existência foi completamente excluída da história local.
Entretanto, o livro presenteia os leitores com um inesperado regalo, fruto da indignação e notórios sensos de ousadia e insubordinação de Laura Peixoto, que vive em Lajeado, próximo a Cruzeiro do Sul. Extrapolando os limites da história de Malvina, a autora faz uma enfática homenagem a outras mulheres historicamente esquecidas ou apagadas deliberadamente. Em 32 páginas inseridas ao final da prosa, Laura apresenta a Linha do tempo feminina, um compilado que dá conta de mencionar o trabalho de mais de 250 mulheres que desempenharam um relevante papel ao longo da história do Brasil e do Rio Grande do Sul, com uma série de contribuições, tanto na área de pesquisa, literatura e ciências, mas que quase nunca são citadas em livros e arquivos. Eram mulheres que estavam nos bastidores de descobertas científicas, revoluções, reivindicações e, sobretudo, muitas delas líderes feministas na luta por emancipação, liberdade, direito de voto e autonomia das mulheres. Impossível permanecer complacente com tantos nomes que foram apagados da história como se jamais tivessem existido. Assim, Laura faz jus a própria reputação que a coloca como uma das vozes mais ferozes e inquisidoras do interior do Estado. Aquele tipo de pessoa que incomoda – ou desacomoda.

