Era a ele que todas as honras deviam ser dirigidas. Mas, por uma dessas idiossincrasias da vida, coube a mim o papel central na comédia de erros que aconteceu. Não me queixo. Apenas gostaria de manter um mínimo de franqueza em minhas declarações, como forma de advertir sobre os riscos a que todos estamos expostos. É um exercício solitário e secreto. E perverso, também.
A fama tem lá suas chateações. A burocracia da máquina me cansa, os contratos são prolixos. Os advogados, esses seres bizarros, nem sempre sabem como tratar uma cláusula. Se perturbam com seu circuito de condutas e sua permanente desconfiança na raça humana e me obrigam a cuidar, pessoalmente, de boa parte dos negócios. Não há como ser diferente, pois estão sempre prestes a descobrir, em um simples artigo, a presença da esperteza alheia, do vitupério. Mas mantenho-os por perto, até como símbolo de status.
Escrevo meus originais diretamente no computador da editora, ligado em meu gabinete com vista para a extensa baía de águas azuis. Os textos vão parar, sem escalas, nas mãos de revisores, preparadores, entendidos de toda espécie. E depois chegam a mim, quando chegam, prontinhos. Dali, são distribuídos para dezenas de jornais do país, nem sei quantos, viram comentários radiofônicos, televisivos. Enfim, repercutem a uma velocidade extraordinária. Não há tempo para nada nesta ciranda que é a vida das redes sociais. E tempo, como se sabe, é dinheiro. E dinheiro é bom: traz conforto, felicidade.
Dou entrevistas com muita frequência. Não canso de ir a festas, receber homenagens, viajo para proferir palestras a estudantes, professores, escritores, participo de feiras. Me perguntam que músicas ouço, quem leio, o que como. Todos me olham com assombro, como olhariam a um vampiro. Me fazem pensar que sou um defunto acabado de sair da tumba. E, no final das contas, me sinto bem. Não me incomoda a reverência, o respeito quase militar que me devotam. Pelo contrário. O ritual me enaltece, me faz dormir todas as noites com um indisfarçável sorriso de satisfação. O sucesso, podem acreditar, é capaz de um prazer perturbador.

Não foi iniciativa minha. Foi mais um acaso que uma oportunidade, mas que se revelou dos mais empolgantes para um cronista, até então, sem brilho como eu. Ele, o Gênio, havia escrito sete livros de grande carga literária, romances e contos fora do comum; o último deles me coube resenhar, assim, sem nenhum motivo especial, apenas porque, pelo rodízio da Gazeta, seria a minha vez, a vez de N.S. Vilhena, jovem crítico literário, escrever sobre a narrativa principesca de G. Garcez, o Grande. Além da resenha, haveria espaço para uma entrevista que ocuparia as duas páginas centrais do caderno literário.
Como de costume, fui em busca de algumas informações sobre o escritor antes de fazer a entrevista. Gostava de recolher opiniões de outros autores sobre os livros, a fortuna crítica, as circunstâncias da criação, o leitmotiv. Se fosse um autor morto, enxertava na resenha pedaços de sua biografia, aspectos da recepção de sua obra quando vivo, essas coisas que ensinam nas faculdades de jornalismo. Fazia parte de uma técnica bastante óbvia de trabalho, que eu tentava em vão transformar em estilo. No meu estilo. Disse que preferia lhe falar ao telefone, não haveria tanto tempo assim, deslocamentos são cada vez mais difíceis, temos fotos de arquivo, o trânsito, o senhor sabe, a preguiça de fazer a ele as perguntas que deveria ouvir há décadas, que não mencionei, mas Garcez fez questão de um encontro, “um urgente encontro”, como ele mesmo classificou. Conhecia-o apenas de nome. Uma única vez encontrei-o em uma sala de cinema, solitário, a bengala na mão esquerda, o ar de falso enfado tomando conta do saguão. Mas foi um encontro fugaz: mal o salão escureceu, mergulhou a calva na poltrona aveludada e roncou pelas duas horas de projeção. Um ronco tíbio. De bebê.
Fui, portanto, à sua casa. Entrei, sentei, esperei e, uma hora depois, vi a biblioteca – uma montanha empoada de livros, como eu nunca havia visto – ser envolta pela penumbra do velho, ainda teso, com um olhar agudo sobre as coisas, o rosto comprido e a barba por fazer, um copo de uísque pendente da mão direita. As paredes eram tapadas de volumes até o teto; em algumas prateleiras, duas, três fileiras se sucediam. Desconfiei que uma boa faxina pudesse pôr abaixo metade daquelas coleções que cheiravam à distração, e que nem em cinco vidas eu leria, mas depois que o vislumbrei tive a certeza de que ele passara boa parte dos anos enfiado nesses recantos lúgubres e pouco iluminados. Eu estava diante de um zumbi. Aproximou-se, aparência apoplética, sentou-se a meu lado e, com uma expressão severa, confidenciou: “Escute, meu jovem: O Cordeiro de Deus é verdadeiramente o único livro escrito por mim, por esta mão em coincidência com esta mão”. Fez um gesto e espalmou as duas extremidades magras à minha frente. Ao contrário do rosto, as veias pareciam acinzentadas. “Mas não diga isso a ninguém, não escreva, não relate, nem após a minha morte”, pediu. Me fitou cerrando as pálpebras para enquadrar a imagem no foco de seus olhos fracos. Mortificado, fiz um levíssimo movimento de concordância com a cabeça. “Ótimo, ótimo”, riu-se ele, tamborilando os dedos na minha coxa. E mostrou os dentes amarelados pelo cigarro. Depois, levantou-se, caminhou em direção à porta e sumiu pelo corredor escuro.
Não dei muita importância ao episódio. Conhecia escritores: são em geral afetados (quando não afeminados), gostam de chamar a atenção e preocupam-se muito pouco com a verdade, essa verdade avarenta que interessa a nós, jornalistas. O Cordeiro de Deus seria então o único livro realmente escrito por Garcez, rá, que ótimo! Os outros, então, quem teria escrito? Quem teria transmitido ao Apologético as narrativas “únicas, plenas, cabais” dos outros seis livros até então assinados por ele, quase todos com a unanimidade das obras capitais? Pensei logo que, na verdade, ele não desejaria manter a revelação como secreta, e muito menos para sempre. Queria que eu abandonasse aquela cena extravagante, corresse ao jornal, sentasse à frente do computador e digitasse, com todas as letras, com todas as luzes daquele crepúsculo de outono, a fábula contada por ele. Depois, o desalmado aguardaria o dia seguinte, compraria o jornal e se divertiria com as veleidades escritas e assinadas por um obscuro crítico metido a sebo. Foi exatamente isso que sucedeu, exceto pela última parte: na manhã do segundo dia, quando circulou a resenha, Garcez não levantou da cama para apanhar o jornal porque estava morto. Morto desde a madrugada anterior.
A VIDA INTEIRA NUM ROMANCE
Último livro de G. Garcez resume com fidelidade
a trajetória fascinante do romancista e pode ser lido,
desde já, como seu imponente testamento literário
Por N.S. Vilhena
O mundo é sonho ou realidade? Para G. Garcez, que lança O Cordeiro de Deus (Books, 327 páginas, R$ 49), é realidade palpável, “um corpo vivo, que o olho, o tato e o ouvido não mentem”. O mundo não é, como dizem aqueles que não têm esperança, uma aparência, uma criação da linguagem. E os homens, se tivessem um olhar mais sábio em relação às coisas, poderiam também enxergar novas realidades, mais do que estrelas no Jardim do Mundo. “Ele [o mundo] é mais do que o olhar puro e ingênuo dos homens. Necessita de sabedoria, de conhecimento, para realmente ser um mundo além das aparências das coisas.”
Através de quatro personagens que nunca se conhecem, mas que procuram a mesma coisa por caminhos diferentes, Garcez critica a visão de mundo que considera a dimensão real uma mera aparência, uma criação linguística do homem. Para ele, esses são homens sem a esperança de um reconhecimento da supremacia da natureza sobre a presença do intelecto. Seus personagens não vão a lugar nenhum. Se preocupam apenas em discorrer sobre seus temas prediletos, quase obsessivos (Amor, Posse, Doença, Solidão), sem nunca definir os limites exatos de suas impressões. Importa apenas a linguagem como suporte de adesão ao real, nunca a premissa do inominável, do impreciso.
O romance de Garcez fala de “estar” no mundo em oposição a “perceber” o mundo. Entrar na essência das coisas é impossível, apesar de a essência existir, como afirma com convicção o poeta (na acepção clássica de Aristóteles). Mas se não podemos captar a essência, não nos parecerá o mundo mera invenção, simples abordagem intelectual dessa tentativa de se chegar ao centro de todas as coisas? Sim e não, diz Garcez. Se a essência é impenetrável, nem por isso deve ser considerada ficção, aparência simples. Existe essa esperança de ainda se ver uma nova realidade e mais do que apenas as coisas brutas que existem no mundo físico. E o “mundo vivo” do escritor se apresenta então como um organismo em movimento, em expansão, em aperfeiçoamento, assim como os homens inseridos nesse processo de procura do essencial.
Não à toa, por isso, que O Cordeiro… faz parte do ciclo de romances ingênuos de Garcez (ainda que abra uma nova perspectiva criativa), que inclui também Ave de Arribação, de 19.., e Engenho Seco, de 19…. Contra a corrente dominante de que o mundo é abstração, e que só importa a linguagem como forma de dar conteúdo às coisas, Garcez pinta, por exemplo, a visão ingênua de um jardim olhado do portão, impossível de se penetrar mas sempre belo, sempre passível de ser melhorado a partir do olhar dos homens e mulheres que estão em cena. Eles vivem a mesma situação separadamente, olham o mesmo jardim, discorrem com minimalismo sobre a realidade, se entrecruzam sem se perceber, mas não vão a lugar nenhum. Metaforicamente, não têm esperança alguma de enxergarem algo mais do que um jardim na sua frente. Apesar de quererem muito mais.
Por isso as imagens tão vulgares utilizadas no livro. Jardim, flores, estrelas, tudo faz parte de um universo poético convencional, a narrativa se constrói sempre no caminho do óbvio, o desfecho sempre se dá na previsibilidade do mundo, até Garcez desvendar sua tese nas páginas finais, quando tudo então não passa de literatice, sempre e cada vez mais literatura para tornar o mundo palpável. Por isso a epígrafe (e citações sempre constantes) de Calderón de la Barca. Nada é por acaso. Garcez sabe o que está fazendo ao contrapor a essa visão elaborada de mundo, filosófica e de difícil captação pelo homem comum, um mundo idílico de jardins e flores e estrelas e um olhar perdido, esperançoso, melancólico por sobre um portão fechado. A ironia de Garcez é finíssima. Os julgadores de nosso mundo não passam de ladrões dispostos a nos usurpar o prazer das coisas mais simples ao virarmos as costas a eles. Contra os poetas, brada o escritor, estão os filósofos, que insistem em explicar o inexplicável, o que é apenas e unicamente sensível.
O Cordeiro de Deus é um livro desconcertante. É seco, áspero. Despojado de uma linguagem elaborada, de um discurso. Não se desvela completamente, se esconde em si mesmo, não orienta o leitor, não se explica. Situando-o na sua obra anterior, poderíamos supor que abre uma nova dimensão criativa ao autor, abre um caminho em que Garcez pode muito bem trilhar com a máxima maestria inventiva. É livro de autor maduro, de escritor que encontrou sua forma mais apurada de narrar. Em certa medida, pode ser o único livro verdadeiramente garceziano, escrito com todo o manancial estético do escritor, com suas imagens potentes, vulgares, grotescas até, e com seu discurso subjacente de esperança e de liberdade. É o voo mais alto de um autor em constante processo, que deixa o passado para trás e corajosamente recomeça do fim do caminho. A vida não é sonho, é sentimento. Sentimento íntimo, profundo, diz Garcez. O Cordeiro…, por isso, é o único livro em que G. Garcez se revela ele mesmo, sem adjetivos. Despojado. Por esta razão, é verdadeiramente único.
Cobri o velho de loas, mas na verdade nem gostei do romance. Era difícil, não tinha pé nem cabeça. Dos trechos que li, me peguei dormindo sobre a obra em vários deles. Uma noite, até um pequeno fio de baba deixei pender da língua sobre a página impressa. E, claro, não havia entrevista a publicar, para desespero do editor, que me ameaçou de forma violenta: por que não fez perguntas, por que não insistiu com ele, como o deixou escapar sem uma explicação?
Mas estava tudo ali: a referência a seus outros livros, os bordões tecnicistas, os elogios incontidos ao gênio, essas coisas. Principalmente a última parte, de uma desfaçatez que até me envergonhou. “Desconcertante, obra de autor maduro, áspero”, um chorrilho de maneirices. Só que estava lá, impresso no jornal, e se o encontro com Garcez não tivesse se prolongado até a noitinha, se as notícias culturais tivessem alguma relevância na Gazeta, e pudessem alterar a rotina industrial do jornal, se a revelação não me tivesse levado ao estupor e, de certa forma, atrasado meu trabalho, talvez ele pudesse ter lido a crônica no seu leito de morte ou mesmo à mesa do café. O fato é que ela circulou apenas no sábado, algumas horas apenas depois de o escritor esmorecer. As notícias quase que se sobrepuseram: ao mesmo tempo em que minha crítica causou profunda estranheza e mal estar (pela intimidade pouco recomendável com que eu tratara a questão criativa em Garcez), a morte inesperada do Sátiro provocou especulações acerca de sua característica inusitada e da coincidência dos fatos. Não faltou, mais tarde eu pude perceber, até quem insinuasse que o passamento poderia estar ligado a uma súbita comoção provocada pela resenha, devido a seu impacto e à sua inoportunidade. Eu mesmo fiquei chocado, perplexo.
E, além disso, teria de explicar, dali para a frente, a afirmação de que O Cordeiro de Deus era mesmo o único livro escrito por G. Garcez. Porque agora, desafortunadamente, ele não poderia mais esclarecer a revelação. Nem a mim, que ouvira de seus lábios ressecados pelo cigarro a maldita frase “O Cordeiro de Deus é verdadeiramente o único livro escrito por mim, por esta mão em coincidência com esta mão”. Eu, que ficara estupefato pela declaração e que concordara com ele em jamais, nem mesmo após sua morte, em hipótese alguma, revelar o segredo. Eu, que revelara o segredo e esperava sua reação (supondo que ele queria mesmo que todo mundo soubesse). Eu, que fizera uma crítica descarada de um escritor vivo, esperando seu reconhecimento, e que a lia desapontado, no outro dia, sabendo que o autor já estava morto. Eu, que apostara na aventura polemista, tinha agora a última palavra.
Mas não foi ruim. Já disse: por uma dessas idiossincrasias da vida, acabei sendo tomado por uma aura de percepção acurada sobre o fenômeno literário, acabei galgando a impressão geral de que, mais que um simples oficial das letras, N.S. Vilhena era uma espécie de guru. Um especialista em vida. Um profeta capaz de entender os fenômenos mais recônditos da natureza humana sem perder a razoabilidade, um espírito das artes que tinha explicações, e boas explicações, para tudo. Que era sincero em seus prognósticos, mas que fazia questão de não transformar suas ideias em matéria de mistificação. Enfim, um verdadeiro comandante: falsamente modesto, versátil, indolente.
A publicação da crítica causou uma primeira impressão muito forte, uma espécie de ansiedade coletiva. É verdade que houve, de minha parte, um certo esforço para que prevalecesse a tese da excelência crítica, uma estratégia para transformar a coincidência em fenômeno. Mais do que a ambição, que havia, o que me movia nesse momento era apenas um desejo de desforra contra os verdadeiros críticos que achincalhavam tudo o que não saía das portas da academia. Os obscuros cientistas do impreciso. No meio não-especializado, a crítica causou furor. Na academia, provocou narizes retorcidos, espasmos de asco que, aos poucos, foram sendo engolidos, um a um. Eu lhes devolveria a empáfia com que transitavam pelas ruas. Eles podiam ter certeza que sim.
Logo depois, no embalo da retumbante resenha, veio uma série de três críticas sobre o universo poético de Germana S.L., em que todas as palavras criadas pela autora tomavam para mim uma forma definida, tinham um sentido muito claro, não tinham a obtusidade convencional que se atribuíam a elas, e a tradução da poesia inconsútil de Germana passou a ser uma obrigação minha, para espanto da própria poeta e meu também. Logo eu, que entendia muito pouco o que aquela mulher escrevia. Por isso houve um brutal esforço de minha parte – bem-sucedido, diga-se de passagem – para mistificar a poesia de Germana e transformar a minha crítica na complementaridade da sua obra. Ou melhor, na própria obra em forma de arremedo. Com isso, uma não poderia viver sem a outra. Agora, muitas vezes Germana descobria coisas nas minhas críticas que revelavam sua poesia para ela mesma, que criava sob a pressão dos sentimentos, sob a violência do inconsciente, dos amigos mortos. Eu passara a ser, assim, uma espécie de arauto da sua poesia, um porta-voz até então igualmente inconsciente, pelo menos para consumo externo. Na verdade, eu me fizera necessário, absolutamente necessário a Germana, aproveitando suas peculiaridades poéticas e meu dom, até então desconhecido, de lidar com as palavras. Eu me transformara, conscientemente, num ser indispensável à sua criatividade. Eu passara a dividir a poesia de Germana com a própria Germana.
Em seguida, a poética de K. Miroslaw também foi absorvida por mim, sua narrativa foi apropriada pelo meu discurso com uma naturalidade que me assustou, e a K. também, já que havia a nítida impressão de que eu pensava por ele, eu antecipava suas intenções literárias, eu adivinhava seus motivos, suas paisagens, seus personagens, eu por assim dizer ajudava-o a criar sua obra literária. Eu descobrira enfim uma técnica de colocar no papel apenas as palavras que, por alguma razão desconhecida, as pessoas gostariam de ler. Era preciso muita concentração para captar esse sentimento coletivo, mas aos poucos fui me adequando a essa tarefa de montar o quebra-cabeças do discurso afável e levemente enigmático e fazia as crônicas quase que de olhos fechados. Automatizei minhas ideias sem perder um milímetro do prestígio que já tinha, então.
Não tardou e eu estava escrevendo sobre obras de arte. R.O.N. ficou particularmente irritado quando eu disse que a escultura Am.antes (uma imensa estrutura disforme de arame e garrafas plásticas de Coca-Cola) representava não o encontro de seres na época do efêmero, mas a eternidade que o próprio descartável contém em si (porque, de tão efêmero, ele passa a ser eterno). Era um sentimento, ele me atacou depois, que só podia ter sido roubado, dele ou de alguém muito próximo ao artista, R.O.N. chegou mesmo a insinuar que meu método consistia em explorar fontes muito próximas de meus alvos para arrancar-lhes segredos preciosos, “apropriar-se” como disse em várias entrevistas, apesar de o artista não ter, em nenhum momento, negado o valor das minhas especulações.
Silenciei, então. Não busquei nenhum tipo de polêmica, nada que pudesse colocar-me em desvantagem. Era outra técnica que estava aprendendo a dominar. E ganhei, com isso, o apoio dos ilustres leitores, dos consumidores da arte, até dos intelectuais, que passaram a admitir a hipótese de um jornalista (eu ainda era um) ter direito a licenciosidades poéticas. Assim como veio, R.O.N. foi-se, esquecido por um público cada vez mais hipnotizado pelo discurso milimetricamente pedante do escritor (eu aos poucos adquiria essa forma) mais surpreendente dos últimos anos.
Não abandonei a Gazeta, mas minha coluna, que não passava de eventual, começou a circular por dezenas de outros jornais. Logo passei a escrever também para revistas, editoras começaram a me fazer propostas de agenciamento, passei a dar entrevistas para a televisão, participar de programas sobre assuntos que ultrapassavam a dimensão artística, montei minha própria estrutura de produção, os autores me procuravam receosos do impacto de minhas opiniões, capazes de elevar ou destruir quem quer que fosse. Logo estendi meus domínios também para a política, recebia telefonemas no meio da noite, pedidos de consulta, eu respondia o que achava realmente, tinha como base apenas leituras de jornal, metia uma certa aura de valor em tudo, um tom grave que alterava a banalidade das reflexões, mas de uma certa forma ninguém se contrapunha, às vezes discordava, mas no outro dia lá saía um discurso com minhas digressões e a repercussão era enorme, os jornais acabavam indo atrás, grandes matérias discutiam o tema, e o tal homem público acabava tirando o pé do barro porque afinal foi ele quem levantou o assunto. Para mim não havia mais nenhum segredo: eles apenas queriam ouvir o que quer que fosse que saísse da minha boca. E a minha boca, por isso, não se calou mais.
O livro saiu logo, menos de um ano depois. Reuniu as primeiras resenhas e se transformou naturalmente em best-seller. Ora, um crítico vendendo livros como um novelista. Exemplar. Menos de seis meses e saiu o segundo, ampliando os textos a comentários vários sobre temas de interesse geral, assuntos de massa. Vendeu ainda mais que o primeiro. Já abandonava aos poucos o teor jornalístico, avançava para um público menos especializado e mais abstrato, ávido por mensagens de qualquer tipo, de preferência que pudessem elevá-los a consumidores de uma grande arte. Porque um livro é algo que intimida as pessoas, especialmente as mais simples. Não me continha de satisfação, apesar de lembrar a circunstância pouco nobre em que tudo se dera. Mas o sucesso era assim, para ser usufruído. E meu sentimento de culpa e vingança aos poucos se diluiu no profissionalismo que minha carreira adquiria, na diversificação que era cada vez mais necessária, no faturamento, no tom nababesco da minha vida. Quanto mais dinheiro eu ganhava, menos aquele sentimento de desforra estava presente. Até fiz uma doação em espécie para a biblioteca da minha universidade, a mesma que não me graduou por insuficiência de desempenho. Abandonei tudo o que tivera até então, esbanjei os frutos dessa avalanche de vaidade e, ao contrário do que poderiam supor os amigos mais próximos, não afundei. Cada vez que me desligava mais da técnica, e me guiava pela intuição, mais próximo da verdade que todos queriam eu ficava. Meu trabalho não tinha mais o menor sentido crítico, carecia completamente de fundamentos concretos. Se transformava cada vez mais numa névoa cinzenta, sem forma, apenas densa, mas oca como uma nuvem sem chuva. Estava muito distante de sua origem verdadeira e, no entanto, atendia a um anseio coletivo. E, além disso, era claro, claríssimo. Era um facho de luz no cotidiano de pessoas que viviam na mais completa escuridão.
Aos poucos fui depurando ainda mais meu estilo. Reduzindo-o a pequenas mensagens diárias, a minúsculas metáforas sobre a vida, a conselhos que caberiam mais na boca de uma cartomante. Pílulas de ilusão. Mas era isso ou regressar ao período da Gazeta, aos plantões noturnos, aos fins de semana com o telefone no ouvido escutando as sandices dos bem-sucedidos. Não era mais dono de minha carreira, mas o que importava? Agora, que ouvissem eles as minhas reflexões sobre o mundo. Passei a escrever menos, a ser cada vez mais essencial. Refleti que a exposição exagerada na mídia podia causar um efeito contrário, de rejeição, e busquei outros mercados, fui traduzido, sumi do mapa até que perguntaram “onde está N.S. Vilhena?” e lhes presenteei com a primeira ficção, uma obra mística de um homem em busca da verdade divina. Ou algo assim. Estouro de vendas. Lida, e elogiada, até pelo presidente da República. O mar revolto enfim se transformara num lagoa de águas tépidas, facilmente navegáveis. E eu era o dono dessas águas.
O texto de ontem, por sinal, abriu-me uma nova perspectiva – cada vez mais necessária, já que o sucesso é dinâmico – ao revelar o impacto que pode ter no leitor uma simples frase, uma imagem que concretize no seu inconsciente tudo aquilo que ele imagina mas, por alguma razão, não consegue materializar em palavras. Quando isso se torna possível, a corrente de fiéis está formada para sempre. Recebi a carta de uma leitora com uma pequena fábula sobre três cães e um carro de bois e resolvi publicá-la na íntegra, revelando a autoria, escrevendo o nome de Marinete Laurenciano na coluna, elogiando suas palavras simples e sua moral ingênua, “Quando resistir é inútil, o melhor é viver e adaptar-se”, Marinete tão perspicaz, “O mais sábio é sempre aquele que consegue tirar proveito das circunstâncias inevitáveis e fazer com que elas funcionem a seu favor”, hábil Marinete, e depois de publicá-la recebi uma enxurrada de cartas com toda a sorte de pensamentos, com reflexões iníquas, com desabafos torpes, porque afinal mostrei que é possível, para eles, desfrutarem do mesmo exercício de sabedoria que me enriquece intelectualmente (mas não só, é claro), e juntei tudo num arquivo, passei a uma de minhas secretárias, cataloguei em ordem de importância (fábulas, pensamentos e frases soltas), expliquei as pequenas alterações que deveriam ser feitas para manter o estilo habitual, as adaptações necessárias, e deixei assunto para pelo menos dois meses. Isso sem falar nas cartas que ainda me chegarão pelos computadores, pelas redes, pelo correio. A equipe que se virasse. Fiz isso e tomei um avião para a Polinésia francesa, a fim de ter um pouco de paz.
Flávio Ilha é jornalista, escritor e editor. Autor de Longe daqui, aqui mesmo (2018) e Ralé (2019).

