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Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.
Os homens ocos – T.S. Eliot
Mas a lomba, a insensível e petrificada inimiga dos asmáticos e das barrigas cheias que tentavam subir a Rua da Praia em direção à Independência, continuava lá durante todas as tardes em que eu a via por detrás da minha embaçada janela de bocejos de papéis que não podiam ser rasgados. O Seu Seixas então surgia, agredia a firmeza da minha mesa com um soco de pilhas de folhas e sumia-se em direção ao reino do não faz de conta de sua sala repartida do resto do escritório somente por umas raquíticas divisórias brancas mas ligada a todos nós por uma cética antipatia. A Rua da Praia não chegava a me causar náusea mas resplandecia intocável nos seus disfarçados anúncios de infarto agudo do miocárdio, barrigas balançando afirmativamente frente aos restaurantes que se renovavam aos olhos de quem descia ou subia a lomba.
Eu olhava para o rosto de um jovem de terno que descia a rua falando ao celular quando o soco de papéis de Seus Seixas me interrompeu os pensamentos de que tal era o calor de Porto Alegre que os ternos do Centro estavam deixando de serem ternos para virarem depósitos de suor salgado, palco de monstruosos ácaros porto-alegrenses que intactos se divertiriam nas bolas de poluição do centro da cidade.
“Faz uma tabela dos custos de cada um desses requerimentos, vê quanto deu tudo e leva na minha sala daqui a umas duas horas”, disse-me o Seixas, arregaçando as mangas da camisa e estendendo o seu fio de antipatia por todo o escritório.
Fazia já uns vinte anos que eu era acostumado a ver um grão de Rio Guaíba pelo meio de dois prédios, um rio emparedado, meu grito saía pelos olhos e ia afundar-se lá longe, onde a ilha encontrava o rio e a cidade esquecia o rio, mas os papéis chamavam-me a uma indecente carícia financeira depositada maquinalmente no quinto dia útil de um mês inútil como estava sendo aquele início de janeiro cujas portas do novo ano já haviam sido escancaradas sob a forma de indiscutíveis obrigações.
Os meus colegas de papéis haviam percebido a minha indisposição, pois me olhavam com palavras não ditas de “papai está bravo hoje”, “o chefe quer te matar de tanto trabalho”, “tu nem tá transando com a filha dele, pois assim ele teria raiva de ti como dos meninos que fazem serviço na rua e erram tudo mas ele nem tem filha gostosa, não passa de um gordo bunda-mole, o Seixas.”.
“Eu sei, eu sei”, disse a todos.
E em um segundo foram todos agarrados pelas folhas brancas contrastadas com o preto da tinta impressa, e não me olhavam mais, não depositavam em mim nenhum pedaço de pena ou dúvida. Um deles tossia uma tosse seca de pequenas explosões, como se não houvesse nada a ser explodido a não ser um protesto tímido. De vez em quando um dos colegas se levantava indo direção ao aceso café, e, aproveitando o horizonte por hora mais largo do que o espaço da mesa, dava escancarados olhares viscosos de caricaturas de querer trepar com a colega de trabalho, mulheres firmes e decididas: a saia da Inês de olhos firmes e concentrados e brilhantes e desejosos e rasteiros e disfarçadamente incandescentes como cobra em meio a um jardim de flores: em bem verdade, todos éramos cobras rastejando entre papéis, e essa certeza subia-me mais ainda à cabeça quando o Seixas agrediu-me novamente, desta vez com um soco ainda mais forte, emparelhando novos papéis ao lado dos que há pouco ali havia depositado.
“Tinha me esquecido, ponha em ordem alfabética todos esses serviços prestados nessa última semana”.
Eu encarei as duas pilhas de folhas intactas porém suscetíveis a um lindo voo pela Rua da Praia, pois caso eu as atirasse por aquela janela do Guaíba a dureza do calhamaço s3 diluiria em incontáveis e oscilantes pontos brancos os quais delicadamente viriam a pousar nas pedras duras da rua não sem antes distrair os que por ali passavam com um espetáculo branco e lento. Porém as duas torres montavam guarda à minha frente, e não houve o que eu pudesse fazer a não ser pegar a folha mais de cima da coluna da direita e começar a lê-la com impassibilidade financeira: ela falava em números sobre a quantidade de tabelas a partir do número de outras tabelas feitas mas bem que poderiam ter falado sobre um aconchegante olhar que por alguns segundos se conectava aos meus olhos obrigados a devorar números, criando uma indecência que botava fogo no rio barrento e cobria a suada cidade com estradas abertas e sem trânsito e sem destino. Os olhos decididos me atingiram como tiro silencioso, e eu era um alvo fácil, tão fácil que qualquer um poderia ver aqueles disparos, e eu tentava disfarçar por meio da minha postura de bem entender da tabela da tabela que havia na certa demonstrado o uso racional de muitos neurônios trabalhadores assíduos das cabeças engravatadas do centro da cidade.
Havia a necessidade de agir, e quase me fui em direção ao café se não fosse novamente o súbito aparecimento do Seu Seixas, só que daquela vez o seu passo lento, obesamente destinado a cumprir um objetivo muito diverso daqueles que as duas torres de papéis representavam para mim: entregou um sorridente papel branco a ela, uma folha apenas, que mesmo se tratando de um papel burocrático, era um convite subjetivo que talvez tentasse cessar qualquer tipo de olhos naquela sala que não fossem os convenientes a ele, e havia também o sorriso do poder em direção aos moderados modelos exemplares de terem o que fazer que nós todos éramos: deveríamos ser sem nenhum sentido de fúria que ousasse destruir concretos ou histórias.
Eu tentava ir em direção aos números, pois mesmo com a soma dos números das tabelas resultando sempre em números previsíveis havia uma atmosfera de densa imprevisibilidade nos cantos das sensações pulsantes daquele escritório suado. Era possível fazer malabarismos com os algarismos, calcular a porcentagem da soma da décima quarta divisão da média harmônica de todos os meses, mas o Seixas queria o número exato, a dolorosa conclusão vinda de uma paciência que eu não tinha naquele momento: tudo deveria ser uma lógica que deveria ser encontrada sonolentamente perdida em meio às demandas da contratação dos nossos serviços por homens cujos ternos não representava elegância, mas apenas normalidade. Eu não deveria, mas inevitavelmente meu olhar saltou para fora da janela e instantaneamente foi pousar no pedaço de verde que eu já estava acostumado a ver sempre que havia olhares e pilhas e funcionários e números dentro daquele local: olhei para o rio barrento e senti súbito nojo daquela água monótona, podre, sendo um nojo que me convidava a largar de uma vez por todas uma espécie de cadáver sem cheiro que vinha carregando dentro daquele escritório e que nunca havia tido coragem de enterrar à beira de alguma estrada longínqua. Por alguns segundos pude ter a certeza de que algum homem velho e sem camisa vivia sozinho de tudo, perdido no meio do verde místico das paisagens desconhecidas por aqueles que andavam pelas ruas do Centro de Porto Alegre e não conseguiam ver mais do que mais Centro de Porto Alegre. Virei o rosto para dentro do escritório, em direção a ela, mas:
“Mais uma coisa que eu esqueci, redige umas três petições encaminhadas ao Gonçalo da Secretaria de Segurança, faz do jeito mais formal que tu conseguir, e me leva na minha sala”, e eu senti a inércia dos meus colegas de trabalho me olhando, depositando em mim um misto de humor e indignação e dúvida.
Levantei-me da mesa como um cavalo ferido: tive uma dificuldade tremenda em me erguer sem que me passasse pela cabeça a covardia da fuga dissonante daquela lógica muda, mas quando me dei conta já o escritório e as duas torres de folhas repousavam por detrás da porta silenciosa. Entrei no elevador e a ascensorista me perguntou se tudo estava certo, pois ainda era início da tarde, e eu deveria estar devorando o branco com a tinta preta incrustada ordinariamente nas pilhas mortas de papéis, mas ela ficou quieta ao me escutar dizer que estava tudo em ordem, mas não havia como ela saber quanto os meus olhares se expandiam e se encaixavam desencaixando-se dentro daquela sala de futuras aposentadorias, caixinhas de remédios necessárias à manutenção da ordem corpórea que estava sendo afetada pela postura na mesa e pelo transcurso natural dos papéis bem aparafusados na antipatia do Seu Seixas e quase nada nas escuras saias da Inês que tinha o futuro sabe-se lá de quê.
Por fim o corredor do prédio me vomitou à rua, era como o corredor fino e escuro que separa a vida da morte, porém, uma morte clara, de gente, de sol, de expectativas parecia me aguardar, mas a Rua da Praia me disse oi soltando um bafo de calor de sua comprida boca. Eu não sabia e nem queria saber aonde ir e nem em quem esbarrar na rua aflita e irregular: senti um aperto no peito ao perceber as minhas pernas indo em direção à insensível e petrificada lomba, eu estava indo em direção à Independência, mas logo pude notar a minha falta de força, a minha fraqueza, a lomba sob os meus pés e do gigantesco prédio que se erguia acima de minha cabeça: não havia como lutar.
Virei as costas e voltei ao escritório onde duas horas e meia depois já havia cumprido todas as tarefas do Seu Seixas.
Cristiano Fretta nasceu e mora em Porto Alegre. Graduado e Mestre em Letras pela UFRGS, é professor de Língua Portuguesa e Literatura em escolas privadas. É autor das obras Chão de Areia (2015), Tortos Caminhos (2017) e Crônica de um Mundo Ausente (2022). Colabora com as revistas Parêntese, Sepé e Entre Poetas & Poesias, além do Jornal Extra Classe e dos portais Literatura RS e Passa Palavra. Também é músico e compositor.

