NO DESERTO DO OESTE, por Gustavo Lamounier

No deserto eu me vi, sem direção. Era o fim da tarde.

Ali, no deserto, há um homem perante a vastidão. A terra arde, o vento passa. Ninguém sabe que há um homem ali, perante a vastidão.

A tarde não sabe, o vento não sabe. Nem os urubus sabem.

Deus saberá…?

O deserto do oeste me deixara às margens do grande rio. O deserto do oeste o seguia — e espalhava-se por todas as partes.

O que é um deserto? — perguntam os profetas.

O que não tem margem — responde Deus.

Às vezes, o deserto não tem margem, não tem oásis, não tem deus. O deserto só tem o deserto. E há um homem nele.

Por séculos, as caravanas navegaram em sua paz. Buscavam drogas, ouro, escravos. Alguns buscavam Deus.

Todos buscaram a sua margem, o lábio que ele nunca lhes ofereceu.

Só homens destroçados podem buscar um deserto, crendo que dele hão de fazer um lar. Mas cada um vai-se perdendo pelos areais em chama, e já não sabe mais como retornar… Alguns buscam no deserto aprender a voltar.

Não foi por causa de ti que parti pelos ermos. Eu era um homem sustentado por um cajado. Errando, acreditava endireitar os meus erros. Rá, triste engano…

Os ermos eram tão ermos, as planícies eram tão planas! O horizonte era chama, mas o chão — era seca. O rio deslizava ao lado — indiferente. O rio não tinha água; não nos daria do que beber.

Eu pisava aquele chão que, antes de mim, pisaram tantos outros. Nisso — descobri, com um riso azedo — não havia qualquer consolo. O deserto continuava a fluir, e todos os passos dados nele eram passos nunca antes dados. Ele engolia a todos.

Muito sangue já fora derramado ali. Mas não havia monumento algum para comemorá-lo, nenhum cemitério, nenhuma memória de nenhum soldado. O sangue ressecara, e não deixara vestígio para trás.

Não. Só o fim de tarde, às vezes, parecia lembrá-lo…

Não foi para derramar meu sangue que vim para cá. Tu sabes o quanto derramei meu sangue diante de ti. Tu rirás, sem dúvida, mas tenho saudades disso: as veias estourando, os curativos improvisados, o vermelho hilariante nas paredes. Tenho até saudade de nossa perversidade. Eu lembro: ela transformava a noite em sede, fazia da paz um sonho perturbado e febril, onde tudo tinha tanto gosto que enjoava.

É, enjoava… E dava nojo. Quanto nojo. Era a própria definição da palavra nojo.

No oeste, nada tem nojo e nada tem desejo. Alegria e tristeza são palavras perfeitamente vazias. Tu não conheces o oeste para rir de mim. Por isso, continuas apodrecendo em teu nojo. Mas não eu, não: eu não apodreço. Eu sou uma coisa que vai sumindo — como o vento.

Já conheci homens que levavam a sério a palavra “nobreza”. Hoje, finjo que zombo, mas eu próprio já fui assim. Agora parece que já faz tanto tempo… um tempo tão vasto… mais vasto talvez do que as próprias planícies.

Subo um riacho, descubro nele uma pequena depressão, pequeno monumento na planície desmaiada. Tem grama verde, pedras lisas, uma queda d’água. A queda d’água sugere uma recordação. Bem sepultada. Quem sabe até se ainda viva…

Recordação é uma palavra bonita demais para esses anos que vivi. Aliás: vivi?

Não, essa recordação de que falo é coisa bem mais funda — bem mais antiga do que essa vida, esses anos… Esses anos não: essa embriaguez. Daquelas fortes, dolorosas, cruéis. Daquelas que te fazem vomitar o teu próprio ser.

Mas erro pelos ermos, e os ermos parecem nunca ter fim. Às vezes, olho para estas paragens e sinto tanta saudade da paz…

Tu rirás de mim de novo, mas te direi: é preciso paz para pulsar de verdade. O homem inquieto é o homem desesperado, e o homem desesperado — já não é homem mais. Não: ele já é algo parecido com a morte, parecido com uma ossada.

Mas o homem no deserto não é o deserto: é o homem. Ele não conhece a paz. E ele vaga, e vaga e… ah… vaga novamente…

Mas não quero mentir: na vastidão, descobrem-se coisas belas. Profundamente belas, sim. A queda d’água, o horizonte, as rochas… Mas também a paz, o fim de tarde, a saudade.

Sei que prossigo com estes passos no chão. Não estou indo mal. Porventura encontrarei algo no fim da vastidão…?

Oh, tolice!

(Tolice em que todos os andarilhos — eu também — acreditaram…)

Não sei bem por quanto tempo estive no deserto. Não sei como saí de lá. O mundo estava mudado. Eu estava, também. Mas não o bastante. Eu me fizera mais deserto do que homem…

Me recordo sempre dos fins de tarde de lá: são muito bonitos; lindos mesmo, de de fazer a gente querer chorar. Toda a natureza ali é indiferente. Isso, crê-me, é profundamente doce. Algumas aves aparecem, e depois fogem. Fogem para o norte — para longe…

É no oeste — bem tenho percebido — que todas as coisas morrem…

Gustavo Lamounier é estudante de letras clássicas na UFMG, com veleidades de escritor e poeta nas horas vagas. Vive em Belo Horizonte (MG).

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