Ainda que ela se esticasse nas pontas dos pés, mal alcançava a velha lata de biscoitos em cima do balcão. Lucinha podia ouvir o estômago do irmãozinho contorcendo-se em um longo lamento desde as primeiras horas da manhã, quando um raio de sol invadira o barraco através da rachadura na parede. Quem escutava de longe o choro de Maicon não acreditava quando o via de perto. O menino de rosto encovado e pernas de cambito transmitia toda a fragilidade no olhar. O sofrimento causado pela fome é que, à distância, o fazia parecer muito maior.
Ela bateu na lata para soltar o que restara dos biscoitos, despejou o último punhado de leite em pó e preencheu com a água da torneira. Deixou que o lambuzo tomasse conta do pequeno enquanto tratava de se arrumar. Antes de sair abriu a geladeira apenas para certificar-se de que o milagre não havia mesmo, ocorrido. Pegou o irmão no colo, acomodou-o no lado esquerdo da cintura e desceu o morro a passos ligeiros, desviando dos buracos, das poças formadas pelo esgoto a céu aberto, dos retalhos de vida balançados pela brisa matutina em varais improvisados do lado de fora das janelas. Pelo caminho ia cantarolando no ouvido de Maicon a única canção que aprendera sobre pedrinhas de brilhantes para mantê-lo afastado da trilha obscura, aquela que despertava o bicho do medo.
Ao cair da noite Lucinha subia de volta com o pequeno de arrasto, sonolento, sujo de terra e de fuligem, e com a barriguinha cheia. Dessa vez tinham conseguido um saco de arroz e outro de feijão. Precisariam aguardar o silêncio da madrugada para acender o fogo e preparar a refeição.
Aos trinta anos de idade as lembranças ainda o corroíam por dentro. O tempo, juiz absoluto em sua vida, fazia questão de manter vivo cada detalhe, perpetuando a infância de Maicon, igual sentença máxima proferida em júri popular. Cada momento da fase de meninice tatuara em sua personalidade um símbolo distinto, um modo característico que o impelira a conquistar o seu lugar no mundo. Aprendera na prática, entre a lavagem de um carro e outro, enquanto aguardava na fila do restaurante popular ou ainda batendo de porta em porta em busca de roupas e calçados usados, sobre gentileza e desprezo, sobre gratidão e indiferença, sobre empatia e preconceito, sobre caridade e avareza.
De súbito, ao cair nas graças de um comerciante conseguira, enfim, o primeiro emprego como auxiliar de limpeza. A vida, então, passou a chamá-lo para fazer escolhas. Levado pelo patrão aos cultos de todas as sextas-feiras, Maicon recebeu convites para falar ao microfone sobre a época que o tinha marcado de modo definitivo, e o caminho que percorrera até chegar ao púlpito. Com a desenvoltura conquistada nas ruas, rapidamente tornara-se um semeador de esperanças, um bedel de seu tempo, uma nesga de luz para um público que não conseguia vislumbrar a porta de saída para nenhum de seus problemas. Por outro lado, porém, também passou a receber outro tipo de convite. Nessas horas Lucinha sempre estava presente em seu pensamento. A menina agarrava a mão do irmãozinho com toda a força que podia, e o afastava da trilha obscura, aquela que despertava o bicho do medo.
Ele respirou fundo antes de começar a subir até a cidade alta. O cheiro de feijoada de imediato entranhou-lhe nas narinas e o fez salivar. Uma estranha sensação tomou conta de Maicon ao transitar pelas vielas e becos de sua infância. Nada mais era igual a antes, e tampouco estava diferente. Aos setenta anos carregava o neto por uma mão e a dignidade como direcionamento, orgulhava-se de jamais ter seguido pelo caminho mais fácil daquela jornada. A satisfação transbordava do peito ao levar o pequeno João para conhecer o lugar onde o avô havia nascido e crescido.
O casebre, outrora escorado por pedaços de madeira, já não se esforçava para manter-se equilibrado sobre a parte mais íngreme do terreno. A família que agora ocupava o lugar, transformara o velho barraco em uma simpática casa de dois pisos. Maicon foi recebido com o almoço à mesa, muitas recordações preencheram lacunas na conversa que se estendeu até o fim da tarde. Ele preferiu omitir os detalhes sobre a maneira como os pais tinham falecido, a memória daquele episódio traumático já não passava de cena repleta de falhas, desbotada pelo tempo. A única certeza é que tinha ficado sozinho muito cedo no mundo, era um sobrevivente, alguém a quem fora dada uma segunda chance.
Logo após a perda dos familiares, precisara esconder-se para não ser levado para um abrigo onde seria privado de sua liberdade. Aprendera a reconhecer os sons de passos ao redor do barraco, dos meninos curiosos que espiavam pelas frestas, mas temiam entrar. O velho Zé Bento, curandeiro da comunidade, encarregara-se de manter as pessoas bem longe do lugar espalhando aos quatro ventos, em meio às baforadas do cachimbo, que aquele que se atrevesse a entrar no casebre, seria levado para o outro mundo pelas almas que ali habitavam. Sussurrava, de propósito, com a voz rouca para melhor ser compreendido, o relato sobre o dia que tinham sepultado os moradores sob o piso da cozinha. Muitas vezes, enquanto todos dormiam, o velho curandeiro levara leite em pó e pão dormido para o amiguinho.
Quando o sol baixou no horizonte e espalhou ao infinito a sua palheta de cores, ele se despediu dos novos amigos, olhou para trás antes de seguir com João dormindo em seu ombro. Lá de cima, detrás do abacateiro, Lucinha acenou para o irmão.
Ele sorriu ao andar a passos firmes e vagarosos, com a paciência e o cuidado de quem não possui mais nenhuma outra urgência na vida. Maicon desceu o morro cantarolando no ouvido do neto a canção que sempre o mantivera afastado do bicho do medo.
Catia Garcia Schmaedecke, natural de Passo Fundo RS, é autora do romance “A Casa da Grande Colina”. Em 2018 concluiu o Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose. Participou de coletâneas de contos. Em 2019 recebeu o 1º lugar na categoria Contos do Prêmio Nacional de Literatura dos Clubes. Há mais de trinta anos reside em Porto Alegre.


Lindo e delicado conto, faz um aperto aqui na garganta e quase mareja meus olhos. Traz lembranças que nem são minhas mas de forma sutil me tocam como se fossem.