‘REPENSO O MUNDO’, DE WISLAWA SZYMBORSKA

Por Suzana Pagot

Há cem anos, nascia Wislawa Szymborska, no vilarejo de Bnin, na Polônia. Aos oito, mudou-se com a família para a Cracóvia, onde morou sua vida inteira e veio a falecer em 2012. Uma poeta que articula a linguagem de modo a emular uma simplicidade que somente um trabalho muito complexo é capaz de criar e convida para que entremos em sua poesia com olhos curiosos, avistando o mundo como se fosse pela primeira vez e perguntando para tudo,  por quê?

“Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo ‘não sei’, as maçãs do pomar poderiam ter caído como granizo diante de seus olhos e ele, na melhor das hipóteses teria se abaixado para apanhar uma e comido com apetite” (p. 325). Esse trecho é parte do discurso de Wislawa Szymborska, na ocasião em que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1996, aos setenta e três anos. Não saber é o lugar onde a poeta coloca a grande poesia. Não saber insinua-se pelo fazer poético de forma a tramar o signo, desnaturalizando as pequenas e insignificantes coisas do cotidiano, surpreendendo-se com as profundas transformações provocadas por uma descoberta científica ou se estarrecendo com a deformação imposta por uma sandice humana como a guerra. Não saber é perguntar-se. Se pensarmos bem, as incertezas abrem espaço para o experimento, para a tentativa e para a redenção. Diferente das certezas totalitárias e totalizantes, a dúvida inspira possibilidades e aceitação de que, se por um lado é preciso seguir em frente, por outro, é possível diversificar as rotas, para encontrar, talvez, mais bálsamos para as dores do que lâminas para provocá-las.

Ainda nesse discurso ela ratifica: “A inspiração, seja ela o que for, nasce de um incessante ‘não sei’”. E dessa forma instaura sua poesia, salvando dos escombros o que somos de mais íntimo; questionando as grandes certezas do século XX; denunciando nossos piores atos, trazendo à tona a beleza da capacidade humana de criar e se recriar. Afinal, “Depois de cada guerra/ alguém tem que fazer a faxina./ Colocar uma certa ordem/ que afinal não se faz sozinha.// Alguém tem que jogar o entulho/ para o lado da estrada/ para que possam passar/ os carros carregando os corpos.// [..] Alguém tem que arrastar a viga/ para apoiar a parede,/ pôr a porta nos caixilhos,/ envidraçar a janela.// A cena não rende foto/ e leva anos/ E todas as câmeras já debandaram/ para outra guerra. […] Na relva que cobriu/ as causas e os efeitos/ alguém deve se deitar/ com um capim entre os dentes/ e namorar as nuvens.” (p. 93)

São muitas as leituras possíveis de sua obra. A escolha íntima e intrínseca a memórias afetivas recai sobre alguns poemas em que, mais explicitamente, o eu-poético inverte a lente que Szymborska utiliza para aproximar-se e distanciar-se da realidade externa, mergulhando em sua própria subjetividade, como no poema “Entre muitos”, no qual a construção da experiência humana se faz por meio do levantamento de hipóteses sobre a aleatoriedade de estarmos no mundo e da ambiguidade entranhada na condição humana, concluindo que “Sou quem sou. / Inconcebível acaso/ como todos os acasos.” // Fossem outros/ os meus antepassados/ e de outro ninho/ eu voaria/ ou de sob outro tronco/ coberta de escamas eu rastejaria.// […] Eu também não tive escolha/ mas não me queixo./ Poderia ter sido alguém/ muito menos individual./ Alguém do formigueiro/ do cardume, zunindo no enxame,/ uma fatia de paisagem fustigada pelo vento. […] Se eu não tivesse nascido/ na tribo adequada/ e diante de mim se fechassem os caminhos?// A sorte até agora/ me tem sido favorável.// Poderia não me ser dada/ a lembrança dos bons momentos.// Poderia me ser tirada/ a propensão para comparações.” (p.101).

Ao longo do poema de quarenta e três versos, o eu-poético articula um processo de comparação em relação às possibilidades do ser ou as possibilidades de ser. Observa os diferentes reinos, animal, vegetal, mineral e vislumbra a pluralidade dos movimentos da vida, coloca-os sob o microscópio e, por não ter perdido sua habilidade de olhar a existência pela lente da comparação – e por isso estar entre – alcança a lucidez necessária para tentar deslindar o que somos. Esse jogo argumentativo se estabelece em boa parte dos poemas selecionados na edição traduzida por Regina Przybycien, publicados pela Companhia das Letras (2011). O volume apresenta alguns poemas de 1957(Chamado por Yeti), 1962 (Sal), 1967 (Muito Divertido), 1972 (Todo Caso), 1976 (Um Grande Número), 1987 (Gente na Ponte), 1993 (Fim e Começo) e 2002 (Instante).  Desde comparações mais abstratas às mais explícitas, a poeta constrói seu universo poético no chiaroscuro, brincando com os elementos em lados opostos de uma balança, investigando de que  maneira suas oscilações permeiam a vida.

A dualidade que deriva desse movimento não a fragmenta, nem a torna amarga e seu ceticismo é muito mais precaução do que descrédito; a dúvida está mais para construir liberdades do que minar esperanças, e confidencia “[…] Prefiro Dickens a Dostoiévski./ Prefiro-me gostando das pessoas/ do que amando a humanidade/ Prefiro ter agulha e linha à mão./ Prefiro a cor verde./ Prefiro não achar/ que a razão é culpada de tudo./ Prefiro as exceções./ Prefiro sair mais cedo./ Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos./ Prefiro as velhas ilustrações listradas./ Prefiro o ridículo de escrever poemas/ ao ridículo de não escrevê-los.[…]. Prefiro a bondade astuta à confiante demais./ Prefiro a terra à paisana./ Prefiro os países conquistados aos conquistadores./ Prefiro guardar certa reserva./ […] Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando./ Prefiro ponderar a própria possibilidade/ do ser ter sua razão. (p. 87).

Como assinala Margarit, “el límite de la poesía, […] es el de la emoción. Quiero decir que no me interesa el poema que no contribuya a hacerme mejor persona, a procurarme mayor equilibrio interior, a consolarme, a dejarme un poco más cerca de la felicidad, sea lo que sea lo que signifique ser feliz.” (p. 74). Aqui, mais um dos motivos de acercamento da poesia de Szymborska, alguma felicidade para colocar na bagagem e seguir editando a vida.

Leia mais da autora em Sepé.

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