‘TANATOGRAFIA DA MÃE’, DE ISADORA KRIEGER

Por Mar Becker

Não vou lembrar quem me disse. Nem onde nem por quê. Em mim ficou só ficou a imagem, a advertência como palavra, “Não se deve jamais baixar a febre de uma criança, porque é esse o modo como se opera no seu sangue ínfimo a queima do sangue imenso da mãe”.

Eu? Sequer sabia que um corpo pode carregar outro corpo dessa maneira, como o mar carrega outros rios, como os rios carregam lagos e lagunas. Sequer sabia que também os lagos carregam eles mesmos aquela dúzia de bocas que um dia foram abertas em halos d’água, na lembrança da pedra lançada. (Os círculos surgindo um de dentro do outro, incessantes. Como se quisessem dizer algo.)

Para ser sincera, acho que até ler este Tanatografia da Mãe, de Isadora Krieger, eu não havia percebido que febre era aquela, que não se devia baixar – que unia dois sangues, duas vidas.

Aqui, as duas vidas que nos orientam são mãe e filha. Digo duas vidas, mas são também duas mortes. É a mãe que morre, e nisso leva um pouco da filha. É a filha que persiste, apesar, e então faz de si um caminho de guarida para a mãe morta, a “mãe-em-retiro” – essa “Mulher que Não sei”, menciona a poeta. Essa que, desconhecida, não cessa de nascer “da falta de um nome, repetido à exaustão”.

Delicado e assombroso, erigido inteiro do que em cada cena trazida da infância, em cada memória, se tece como ternura e perigo, o projeto de Tanatografia toca na ave mais cara à poesia – a do silêncio; dos limites do dizer.

E o que soaria paradoxal, o que denotaria uma contradição de termos (“tânatos” e “grafia”), lançando-nos a um estado de paralisia diante da pergunta “Com que vocabulário se escreve a morte, ela, que é território do impronunciável?”, o que, em último caso, nos convidaria a morrer junto com a morte –, é isso precisamente o que se torna ímpeto de escrita nas mãos de Krieger.

“Letra a letra”, ela nos conduz à compreensão de que há mais do que podem as balanças humanas. “Letra a letra”, sussurra sua canção improvisada. Mesmo sabendo que, sim, a casa já “esteve mais cheia” e que também perdeu “muitíssimo para o Inconcebível”, mesmo assim, letra a letra, nos mostra que “subsiste o amor, / o fio no qual a morte vacila”.

Leia mais da autora em Sepé.

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