Traduzido por Dilan Camargo
A GUARIDA
nesta casa vive uma menina de olhos tristes
me pergunto se haverão outros com mais tristeza
não carrega mais pasado que uma brisa de jasmins
inundando a sua última primavera
as mãozinhas se enredam de escorpiões dourados
enquanto cruza o corredor do escritório à cozinha
mas esses passos esses pasos
parece levada por um sopro de anjos ansiosos que abrem
caminhos para que a sua princesa levite triunfalmente pelo céu
nada a detén entre esas paredes nem as risadas e nem os mortos
quando dorme rosna ferozmente
como um animal selvagem fuçando uma saída
me aguça os sonhos dentro de sua casa
com bonecas nuas
caminha sobre meu corpo em ziguezagues
de sapatinhos brancos
usufrui de cada buraco que conquista na minha memória
desordena o templo joga ao vazio os centímetros
que me sobram
e grita! a menina grita sem piedade
há días em que parece despertada por um coro
de virgens tenebrosas
as horas caem precipitadas num labirinto do tempo
meses séculos e os relógios desaparecem
então outra vez come descontrolada do meu prato
come até vomitar
vomita ao espaço os seus silêncios
as recordações que me procuram
vomita no pátio de jasmins a casa de bonecas
e meus anos não a encontram minhas palavras são surdas
só conto com abrigo no mundo íntimo de cima
subo nos galhos de uma árvore espinhosa entalhada em versos
quando enfim cai vencida beijo a sua testa
levo as mãos desgarradas pela aventura
sobrevivi à batalha
na minha casa vive essa menina de olhos tristes
me pergunto se haverão outros com mais tristeza
(do livro “Desde La guarida” – Ed. Ciudad Gótica, Rosario – Prov. De Santa Fe, Argentina/2014)

A GRETA
e agora a greta
de onde irrompe o choro de toda uma espécie
onde também as minhas mãos arranharam
adormecida de estupidez greta
patética desde teus olhos escuros
lânguida greta de salto alto
de boca vermelha
de sangue puta
Greta maldita
a adorada
a Eros
A sagrada greta que traz ao mundo o Homo Sapiens ereto
A greta fêmea que logo quer matá-lo
Mas é só uma greta
um furo aberto à base de golpes
E às vezes ocorre-me encontrá-la plena de ódio
(do livro “Desde La guarida” – Ed. Ciudad Gótica, Rosario – Prov. De Santa Fe, Argentina/2014)

MINHA CASA DE ANTES
o amor acaba sendo um instante
que a memória cristaliza
e que as demais tentativas não conseguem retocar
lembro-o dentro de um automóvel
te busco disse
era a hora da coruja na noite do povoado
o sorriso de amor era imenso
amor tinha sabor de menta
doía como doem as feridas recém abertas
amor dizer é melhor que te cales
amor dizer ter mais força
amor dizer depois amor
enquanto batia no centro de uma roda de bonecas
e a gente aprende então uma nova habilidade de saltar cercas
numa situação de próximo álibi
eu escapar de amor aquela noite
eu deixar de ser um lugar seguro
eu ver minha casa de antes desaparecer
(do livro “El hueso de la noche” – Ed. El Suri Porfiafo, Buenos Aires/2021)

DOIS CORPOS
e se caímos?
digo, e se nos deixamos cair
ao vazio íntimo e amoroso
de dois corpos nús?
que tela tece o sonho
depois do sexo?
e se não tenha sido tão grave?
e se foi apenas um fugaz abandonar-se
um breve prolongamento do instante
que insinúa o mundo
do outro lado das paredes?
E se houvesse alí uma porta
com luzes fluorescentes
indicando a saída de emergência?
(do livro “El hueso de la noche” – Ed. El Suri Porfiafo, Buenos Aires/2021)

CORPOOBRA
habito este corpo como uma construtora
conheço a corrente elétrica por debaixo da pele
as peças em desuso
os quartos ainda por concluir
este corpoobra sabe indicar-me de antemão as fisuras
os possíveis impactos que ameaçam as suas estruturas frágeis
o desacerto aqui se torna insuportável
e as horas passam como enxames de insetos em épocas de praga
nosso alimento vem sempre das alturas
mas o incontrolável
são os detalhes mais sutís
as dobras dos ángulos
as evidências que persistem
e revelam as rachaduras
pelas que começará
a demolição
(do livro “El hueso de la noche” – Ed. El Suri Porfiafo, Buenos Aires/2021)

no pátio da avó
vi pela primeira vez as baleias
fui mergulhadora num diminuto oceano de plástico
e de bonecas nadadoras
naquele pátio tive casa de dois andares
e pão recém assado numa latinha de conservas
aprendi as brincadeiras para ser uma menina sozinha
e a tecer os fios infinitos da perda
ali no fundo do pátio da casa da avó
entre as flores sultanas e justiças-vermelhas
dei os primeiros passos
para despedi-la
(do livro “El hueso de la noche” – Ed. El Suri Porfiafo, Buenos Aires/2021)

sempre é sábado na casa da infância
sempre é o regresso a um dia iluminado
aos sinos da Igreja
a um povoado de procissões pobres
ao aroma de pão recém assado
é sábado
na recordação de uma voz que reza
de mãos acendendo velas aos santos
confundidos entre fitas de boa sorte e ramos secos de oliveira
estemunhos de ossos quebrados dentaduras frouxas
rugas que aquietam a memória
a Santa Bárbara santo deus / santo fortis / miserere nóbis
é sábado
e soam os sinos
e dentro da casa velha
o silêncio
(do livro “El hueso de la noche” – Ed. El Suri Porfiafo, Buenos Aires/2021)
Estefanía Ceballos. Poeta, nascida en Corrientes, Argentina (1982). Em 2014 publicou o seu primeiro livro individual “Desde La guarida” (Ed. Ciudad Gótica – Rosário, Santa Fe) com prólogo da poeta Laura Yasan. Em 2019 “Punzantes Ninfas” (Ed. Ananga Ranga – Corrientes), livro compartilhado com a poeta Laura Yasan. Em 2021 publicou o seu segundo livro individual de poesia “El hueso de la noche” (Ed. El Suri Porfiado – Ciudad de Buenos Aires). Também em 2021 publicou poemas próprios nas antologías: “Paisajes de la infancia: poesía dominguera. Volumen I” (Ed. Cartografías – Río Cuarto, Córdoba) e “Confines de la patria” (Ed. Desde la Gente, Ciudad de Buenos Aires). No ano de 2022 textos de sua autoria foram escolhidos para serem publicados na “Antología de poetas argentinas – 1981/2000” com seleção e prólogo da poeta Elena Aníbali (Ed. Ediciones Del Dock, Ciudad de Buenos Aires). Tem publicado em várias revistas nacionais e internacionais de poesía.


Traduzir os poemas foi um processo de descobertas e de aprendizagens. Alegra-me divulgar poesia de qualidade. Tanto no Brasil quanto na Argentina brilha o extraordinário momento da poesia escrita por mulheres.