ATRÁS, O TREM, por Gustavo Melo Czekster

Assim que coloco o pé na calçada, escuto o gemido do metal se contorcendo atrás, logo atrás do meu ouvido, e começo a correr. Não tenho tempo nem para confirmar com os olhos o impossível, pois o tempo se tornou essencial, e a ideia de desperdiçar segundos para virar o pescoço e ver a máquina resfolegando parece inconcebível naquela situação. A visão é somente um dos sentidos, e não preciso me virar para ouvir o barulho cardíaco das engrenagens e cheirar o carvão queimando em fúria. O trem está correndo, e vem atrás de mim.

Não é a primeira vez que me persegue. Eu o escutei antes, em outros momentos. Ele parece estar à espreita, dormitando como um tigre nos galhos da árvore, esperando o momento para atacar com seus dentes de ferro quente. Foi assim quando, na idade de sete anos, eu encarei de frente o meu maior medo: o gigante Lúcio, de nove anos. Estávamos no parquinho. Ele batia em todos os colegas, roubava o nosso lanche e era o queridinho das professoras. Naquela manhã, quando me empurrou para fora do balanço, eu o empurrei de volta. Cercados pelos colegas, preparamo-nos para lutar e, quando levantei os punhos fechados, escutei o murmúrio distante de um carro ou algum outro objeto metálico. Virei o rosto um segundo, e foi o suficiente para levar o maior soco que qualquer pessoa já recebeu. Na enfermaria do colégio, com Lúcio falando para a professora que eu tinha tropeçado no balanço, prometi que a próxima luta eu ganharia. Foi um dos momentos que me definiram como homem, e somente agora, correndo do trem, percebo-o batendo na minha memória como as ondas chegam na praia.

Dobro a esquina, mantendo a mesma velocidade. Se chegar em casa, estarei salvo. Escuto o soluço do motor e percebo que o trem fez também a curva, mudando a marcha. É noite, e as ruas quase vazias permitem-me correr sem obstáculos. O vento acaricia minhas roupas, erguendo folhas em pequenos redemoinhos que insistem em perturbar o meu caminho. Não vou parar. Não é a primeira vez que vencerei o trem na corrida.

A primeira perseguição aconteceu logo depois que levei Cristiane, minha colega de aula, para casa. Em outros momentos eu também ouvira o trem, mas era um sussurrar longínquo, mais uma lembrança de que algo estava me vigiando do que propriamente uma ameaça. Após uma tarde de estudos na biblioteca, acompanhei Cristiane até a sua casa, que ficava do outro lado da cidade. A cabeça estava cheia de equações, de fórmulas químicas, de regras de acentuação. Cristiane e eu caminhávamos, conversando sobre as matérias que ainda faltava estudar, quando o pé dela falseou e nossos braços se encostaram. Sentimos algo como se fosse um choque, uma faísca, um grito, e nos afastamos com rapidez. A pele fez a magia acontecer, pois, de repente, eu me surpreendi olhando o coque que prendia os cabelos de Cristiane, percebendo a curva delicada do pescoço que terminava no meio da nuca, assim como notei as suas bochechas, os lábios entreabertos em um sorriso repleto de calma, os olhos que cavavam um fosso a cada mirada intensa. O resto do caminho fizemos em silêncio, ambos se olhando e evitando se olhar. Deixei Cristiane na frente do seu prédio. Ela disse “até amanhã” e saiu quase correndo em direção à porta de ferro. Parado na calçada, senti uma onda de desejo tomar conta do meu corpo. Queria aquela mulher. O porteiro me olhou feio, como se perguntasse o que eu estava fazendo ali, mas sorri com tamanha felicidade que a cara de mau se desfez e ele me devolveu o sorriso. Estava caminhando pela rua e, do nada, pensei que Cristiane seria a mulher ideal para passar o resto da vida junto. No mesmo instante, escutei de novo o trem; desta vez, ele estava muito próximo, com urgência quase real, como se estivesse atrasado para apagar aquelas sensações. Eu era jovem, muito mais do que sou hoje, e corri com certa facilidade, me desvencilhando do trem em algumas quadras. Aos poucos o barulho do motor ficou para trás, assim como o som das engrenagens subindo e descendo se perdeu entre os outros ruídos da cidade. Corri para longe do trem sem dar atenção, pois o que me preenchia era saber que estava apaixonado por Cristiane.

Aquela sensação de descoberta, de náufrago chegando a um porto seguro, nunca mais apareceu. Isto não é ruim, pois foi substituída por um caleidoscópio de outras sensações, algumas ruins, outras boas. Enquanto corro, posso ver pessoas paradas nas janelas dos prédios, aproveitando a brisa noturna. Algumas me apontam, outras se viram para ver o trem em seu esplendor. Sinto como se estivesse em uma maratona, com gente torcendo para que eu consiga escapar da inexorável locomotiva, mas também existem outros rindo e torcendo pelo trem. Talvez não entendam por que estou fugindo. Talvez elas tenham escutado o trem em outros momentos da sua vida e decidiram se submeter diante daquela máquina quente, angustiada.

Nem todos resolvem enfrentar o trem e fugir. É muito mais cômodo se render, desistir, permitir que ele passe sobre o seu corpo e o leve de roldão. Percebi isto na manhã do meu casamento com Cristiane. Tinham sido sete anos de namoro, com altos e baixos. Todas as estradas levavam para este dia, e ela era a mulher com que eu queria ficar. Quando saí naquele sábado para ir ao armazém, escutei o trem impossível e já comecei a correr. Ele tinha surgido em outros momentos do meu namoro, em especial após as crises, uma recordação de que o trem não era somente um fim, mas também podia ser conforto. Bastava eu ceder, e estaria liberto de tudo, das brigas, das discussões, dos choros. Era difícil resistir às suas investidas feitas de vapor, mas eu preferia correr e ficar na frente daquela fera. Era inocente, ainda tinha a ilusão da vitória.

Na manhã do casamento, o trem veio decidido a me pegar. Podia sentir o seu desespero, os gritos que o motor dava para me forçar a desistir. Eu corria com toda a energia, mas senti a presença de uma sombra tentando me convencer a desistir. Foi a primeira vez que corri contra ele e contra mim mesmo, e por isso os passos pareciam estar pesados. A todo momento eu me perguntava se valia a pena continuar tamanha loucura, se não seria melhor desistir daquela corrida sem sentido, fazer como tantos outros: acomodar-se, admitir a derrota. Corri pela vida, mas, naquela manhã, também corri pela minha alma. Quando consegui vencer após muito esforço, percebi que estava mais difícil evitar o trem. Uma parte de mim rezou para que aquela tivesse sido a última corrida.

E eu estava errado. Enquanto corro pelas ruas do meu bairro, as poucas pessoas se desviam do meu percurso como se estivessem diante de um leproso. O trem nunca esteve tão perto, ele está à distância de uma respiração. Se eu virar, se mexer o rosto dois centímetros para o lado, ele vai me acertar com a sua vontade absoluta de ferro. O motor parece rir, pois sabe que logo vai saborear a minha carne. Apesar disso, corro sem hesitação, um movimento após o outro, um passo de cada vez.

O trem não podia ter escolhido momento pior para um retorno. Há alguns anos eu não o enfrentava e hoje, justo hoje, quando Cristiane falou que estava grávida, ele reaparece com raiva redobrada. No entanto, desta vez está diferente, quase triste. Eu também corro sem vontade, sem a mesma garra de outros anos. Se me esforçasse para valer, conseguiria fugir do trem assassino, mas não sei se ainda tenho energia. Estamos os dois presos à rotina: o trem corre para me acertar, eu corro para não ser atingido. A diferença é que o trem sabe da inutilidade da minha fuga; sabe que, cedo ou tarde, irá me atingir. Ele respeita o meu desejo de escapar, mas não existe salvação; o trem vem por todos nós. A compreensão deste fato me acerta como um soco. Nunca irei escapar do trem, da vida, das responsabilidades, do roteiro que foi escrito desde que nasci. Não sou mais senhor do destino, não sou mais o capitão da minha alma. Os passos ficam progressivamente mais cansados. O trem sente a minha dúvida e parece crescer. Fecho os olhos e receio que o meu último passo não seja um pulo para a frente, mas sim o recuo, o alívio do fracasso, o conformismo de ser mais um de vocês, um atropelado.

Gustavo Melo Czekster é formado em Direito pela PUC-RS, mestre em Letras (Literatura Comparada) pela UFRGS e doutor em Escrita Criativa pela PUC-RS. É palestrante de temas ligados à literatura, resenhista de sites e ministrante de oficinas literárias. É escritor, autor de dois livros de contos: “O homem despedaçado” (2013) e “Não há amanhã” (2017) e de um romance: “A nota amarela: seguida de “sobre a escrita: um ensaio à moda de Montaigne” (2021). Com o segundo livro, foi vencedor do prêmio Açorianos 2017 (categoria Contos), do prêmio AGES de Literatura (categoria Contos e categoria Livro do Ano) e do prêmio Minuano de Literatura (categoria Contos), tendo sido finalista do Prêmio Jabuti 2018 (categoria Contos). Com o terceiro, é finalista nos prêmios Minuano e Oceanos de 2022

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