Num canto das vastas terras deste Brasil, cujo nome não importa lembrar, ocorreu um feito corriqueiro entre os tantos que ocorrem diariamente, nada meritório, mas tampouco sem seu mérito habitual.
– Eu odeio minha mãe! – Disse uma voz, como solta no ar, parecia um conjunto de sons que não iam de encontro a ninguém, mas alguém respondeu com um gesto de carinho, botando uma mão em cima da mão do filho raivoso. Tem ódios que são atemporais, o tempo passa, mas o ódio continua intacto no peito, do mesmo modo que o amor pode passar anos adormecido num coração, intacto e que acorda de forma abrupta só ao lembrar da pessoa amada. Amor e ódio são as duas faces da mesma moeda, porém crescemos ouvindo que não podemos odiar porque o ódio é um sentimento ruim… Ruim, mas inerente ao ser humano.
Já dizia o… aquele escritor mineiro! Aquele que devia ter ganhado o prêmio Nobel de Literatura… que era médico, poliglota… Não lembro o nome, mas você sabe quem é… Pois bem, ele dizia, ou seja, ele disse numa de suas obras… que a gente morre é pra provar que viveu. Foi esse o caso da mãe do filho que a odeia… Ela se matou pra provar que viveu. Não é uma tolice?
– Minha mãe – retomou novamente a triste voz – Nunca quis viver a vida que viveu, mas acreditou que mudar não era possível, ao invés de mudar de vida se matou. Por isso eu odeio ela, porque se matou! – A voz se fechou com um fio de angústia. Os olhos penetrantes olhavam pro nada, um nada que se fosse algo teria se desvanecido pela força de seu olhar.
Como alguém pode odiar uma pessoa morta? Pois é o caso deste jovem, ele odeia uma pessoa que já não existe, que existiu… mas que com a própria morte deu nascimento a um ódio atemporal, incontrolável, perturbador. – Minha mãe só se importou com meu pai, só nele ela pensou na hora de se matar. Não pensou em mim, nem nos meus irmãos, meus irmãos não odeiam ela. Só eu odeio ela. Todos me falam que meu sentimento é estúpido, sem razão de ser. Que devo compreender… Compreender o quê?
Coisas mais raras tem sido vistas nesta terra… Esta mulher casou e morou no interior de uma cidadezinha, no campo, em sua juventude, junto ao marido e filhos pequenos de três, cinco e sete anos. Logo se mudaram para uma cidadezinha, quando os filhos já eram quase adolescentes, doze, dez e oito anos. Era uma morena forte, bonita, sorriso branco, alegre. Nunca soube lidar com as traições amorosas do marido, muito menos com as tundas que recebia deste quando ela fazia cenas de ciúmes, ou quando reclamava da vida que levava, ou quando o pobre diabo chegava em casa bêbado. A violência é contagiosa, vai se perpetuando dia após dia… Até que chega uma hora que bater faz arte e parte da rotina. A primeira vez que o marido bateu nela foi quando estava grávida do segundo filho, este que a odeia. Marido e mulher já tinham discutido muito, já haviam se passado alguns empurrões, e sacudidas, ele pegava ela pelos braços e sacudia em meio a xingamentos indecorosos, de vadia pra baixo… ela por sua vez chamava-o de galinha, filho da puta, cafajeste… Assim foram os primeiros anos de casamento.
Mas o primeiro dia que ele bateu nela aconteceu que ela viu, pela primeira vez, ele com a Juçara no galpão, a Juçara era uma mulher que trabalhava na campanha com eles, havia na fazenda um total de uns dez moradores, todos trabalhadores. Eram dois casais com seus filhos (duas famílias), duas mulheres solteiras e quatro homens solteiros… Pois a Juçara era uma das moças solteiras. O galpão ficava longe da casa, mas a esposa foi até lá à procura do marido, ia com uma cesta de alimentos para que o mulherengo se alimentasse, ela nunca ia lá, mas esse dia numa destas tentativas de aproximação ao marido, procurando paz para a relação e amor para a família, decidiu ir com um gesto de carinho. Ao chegar ao galpão escutou, entre o cacarejo das galinhas, uns gemidos e, caminhando lentamente, viu duas sombras que se meneavam num ritmo frenético, quase mecânico e que em meio à mecanicidade dos movimentos, os gemidos se intensificavam entre a poeira que deixam os dias primaveris. O sol irradiava fortemente e as sombras se alongavam. A esposa ficou, por uns instantes, petrificada, só escutando aquela pulsão sexual que escapava pelas bocas dos amantes, era tanto o fervor dos involucrados no ato copulativo que a mulher chegou a se arrepiar, pensou rapidamente em ir embora, afinal não tinha visto nada, só duas sombras… Seria realmente o marido? os gemidos pareciam dele…! E se fosse, estaria com quem? Ela não podia ir embora assim, e se não fosse o marido, quem seria? Continuou a caminhar lentamente até que avistou os corpos em movimento, os dois em pé, ela com a saia levantada, ele com as calças pelos joelhos, ela com os seios que saiam pelo decote da blusa e do sutiã e que eram furiosamente chupados por ele, que sem camisa, pegava ela com uma mão pela bunda, puxando-a contra si, e com a outra, segurava o seio que não lhe cabia na boca… A juçara gemia de prazer, um prazer que brotava pela pele em forma de suor… Um prazer que se viu proibido de se condensar em orgasmo quando a Juçara enxergou a esposa do cafajeste e esmagou os gemidos para dar passo a um grito de horror… Acompanhado de um empurrão no amante. Ele sem entender nada
– Que aconteceu, Carnudinha? – Com a voz trêmula e eufórica, com os olhos arregalados para Juçara, que se limitou a apontar em sua diagonal… Quando ele olhou e viu a mulher procurou guardar a genitália nas calças caídas e saiu correndo atrás da esposa que, com a cesta no chão, corria, com a barriga quase saindo pela boca, para a o rancho que lhes servia de casa… Foi assim que a esposa apanhou por vez primeira, logo de uma discussão espantosa em que ele, primeiro, procurou pedir perdão, cujas preces estiveram interrompidas por objetos voadores de todo tipo: canecas, copos, facas pelo ar, e pela cabeça do primeiro filho de dois anos que, sem entender nada, chorava ao ver o cenário de horror sentado no chão, tapado de poeira, com a boca cheia de barro, esse barro que se forma com o contato da saliva com a terra seca, uma terra que se apegava em sua pele, encontrando acolhida à ventania típica da primavera. Foi, entre as coisas que a mulher jogava no marido, manifestando seu ódio, que ele se abriu caminho entre a quebradeira que se espalhava pelo chão e chegando bem perto da esposa deu uma bofetada que a fez virar para a esquerda, num meneio quase harmônico que encontrou no ar a mesma mão em direção contrária que em segunda bofetada a fez virar à direita caindo pelo chão. Acompanhada de insultos e da seguinte justificativa – Você quer que eu faça o quê se faz dois meses que você não se deixa foder porque dói… por que a barriga… porque isso… por que aquilo… cheia de frescura… Vagabunda!
– Ele saiu chutando tudo do rancho e a criança desconsolada ficou chorando no chão sem ninguém que a acalmasse, a calma veio com o cansaço, a esposa da mesma forma… chorou pra dentro, não se ocupou do filho do chão e com o tombo que levou achou que poderia abortar o filho que tinha nas entranhas… Mas isso justifica que a suicida se suicidasse? Claro que não, isso foi quando o filho que a odeia estava na barriga e quando ela se matou ele tinha quatorze anos… Ainda haveria de viver quatorze anos a mulher, e deu a luz a mais uma menina…
– Minha mãe foi egoísta ao se matar, só pensou nela e no meu pai, porque no fim, ela gostava de apanhar… Ela nunca se separou, ela sempre ficou com ele. Eu cresci vendo ela apanhar e depois escutei do meu quarto eles fazendo a reconciliação, a cama tremendo… Aquele nhiá… nhiá… nhiá… da cama me dava uma raiva, eu sentia vontade de perguntar pra ela se não tinha vergonha na cara não… sempre apanhando e depois deixando se foder por aquele bêbado nojento… É meu pai, não odeio ele, mas é o que penso dele… Anos se passaram, mas lembro de tudo… Meu pai era que nem boi, precisava todo dia foder uma vaca diferente… Uma vez fodeu até um homem… dizia minha mãe, não sei se é verdade, porque no final ela já estava tão ciumenta que chegava a inventar coisas… Estava mal da cabeça, não só por ter se suicidado, mas pelas coisas que dizia e fazia, este feito mesmo de meu pai ter fodido um homem… Ela contava como piada… Uma piada nojenta que eu detestava, não pelo ato sexual entre dois homens em si, mas pelo que aquele ato significava na minha casa… Eu acho até que ela se excitava toda vez que contava essa piada de mal gosto… Ela falava isso e meu pai ficava furioso, nessas noites acho que estuprava ela… pois os gemidos da cama eram violentos e dava pra perceber que os gemidos dela eram sufocados… pelo travesseiro? Se não fossem sufocados a gente não poderia fazer de conta que não escutava nada… Não adianta… lembro dessas coisas e reforço meu ódio…
Pois é, aprendemos que devemos amar nossos pais incondicionalmente, assim como eles devem amar os filhos incondicionalmente, mas nem sempre a regra se cumpre, há as exceções… O suicídio, além dos distúrbios que possam caracterizá-lo, acaba sendo um ato egoísta… O suicida nunca quer deixar de viver, o que quer é deixar de viver a vida que vive… Essa é a questão… O suicida acha que é impossível mudar de vida e acaba com a vida infeliz que leva… Mas de tudo aprendemos, o ser humano tem a virtude de morrer sábio… Até para morrer devemos aprender como… melhor dizendo, até para se suicidar, o suicida deve aprender como vai tirar a própria vida… Como já disse Unamuno, deus de suas personagens, até do pior castigo aprendemos, é o caso de Sísifo que castigado a subir a pedra no topo da montanha, para vê-la cair, e descer para voltá-la a subir, castigo imposto pelos deuses do Olimpo, aprendeu em seu castigo a limar sua pedra gigantesca ao ponto desta caber em sua mão…
– Eu tinha quatorze anos quando ela se suicidou, não pensou em mim, no meu irmão que tinha dezesseis, nem na minha irmã que tinha doze… A gente já morava fazia tempo na cidade… uns doze anos…
Depois da primeira vez que apanhou, a esposa ainda viveu dois anos na recôndita terra em que Juçara era amante de seu marido… Foi lá onde ela foi se refugiar para tirar a própria vida… Uma terra já abandonada por todos.
– Eu lembro que na época ela ficou desaparecida uns dois dias… A gente começou a procurá-la… Só sabíamos que havia saído de casa dizendo que ia ao cemitério… Ela ia com regularidade ao cemitério levar flores pra meus avós… Naquele dia, era domingo, saiu de manhã… cedo… Não voltou. Meu pai começou a ficar bravo… Bebeu. Já começou a ameaçar… Foi duro acabar minha adolescência junto daquele bêbado… Pra todos foi ruim. Meu irmão foi que se ocupou de mais ou menos nos encaminhar na vida… Por isso odeio ela, porque mesmo por tudo que passei não escolheria me suicidar. A vida não é baixar os braços… A vida é revolta, eu sou um revoltado…
O que pensa este filho é exatamente o contrário do que pensou a mãe enquanto tramava a própria morte, como dia a música, quem sabe a vida é não sonhar? A infeliz tinha conseguido dias antes um revólver emprestado com seu irmão. Também homem de campo, mas não batedor como seu marido. Ela disse que o marido é que tinha mandado pedir o revólver emprestado, que iria sair de caça nesse final de semana.
– Quando se passou o domingo que começamos a ir atrás dos familiares e conhecidos foi que desconfiamos que alguma coisa ruim iria acontecer… Porque ninguém sabia nada dela e depois, quando fui à casa do meu tio, ele disse que precisava falar com meu pai. Fomos juntos pra minha casa e lembro que ficou na sala com meu pai, os dois sozinhos… Meu pai bêbado fazia ademãos e gesticulava com gravidade… Meu tio saiu e disse que iria à polícia avisar… Avisar o que? Pensávamos meus irmãos e eu, avisar que ela tinha desaparecido e que tinha a arma dele. Até hoje me lembro da cara do meu pai naquele dia e sinto vontade de espancá-lo… O imbecil ficou se fazendo de vítima, como se ele não tivesse nada a ver com o que estava acontecendo.
Ela, perturbada, já tinha pensado inúmeras vezes naquele dia, onde iria, o que diria… Escolheu como ponto de partida desta vida para o além, aquele rancho horroroso em que viveu… Aquele húmido e diminuto lugar em que apanhou pela primeira vez, um lugar do que, apesar de ter iniciado uma etapa triste de sua vida, guardava uma lembrança feliz. Ela não sabia que podia viver outra vida, ela viveu como viveu a mãe dela, para servir o marido e tentar criar os filhos em meio a tanta pobreza. Ela casou jovem, com dissésseis anos e morreu muito jovem, com trinta e seis. Para colocar em prática o plano macabro ela tinha que caminhar uns dez quilômetros que era a distância que ficava o rancho da cidadezinha em que moravam. A polícia acredita que ela chegou ao rancho perto do meio-dia.
– Ninguém tinha nem ideia de onde achá-la… Domingo foi o rebuliço de que tinha desaparecido… Segunda, reviramos toda a cidade desesperados… Nunca poderíamos imaginar que ela escolheria aquele lugar pra se matar… Só fomos lá, porque a Ana, uma vizinha nossa, disse que minha mãe tinha falado muito daquela campanha nos últimos dias. Contando coisas corriqueiras daquele tempo.
– Sua mãe não tinha uma independência econômica pra se libertar de seu pai?
– Independência mesmo não tinha né, ela era faxineira, nem o ensino médio ela fez, coitada, eu odeio ela, mas às vezes sinto pena… Acho que não entrava na cabeça dela a possibilidade de ser independente… Acho até que nos pariu e nos amou por obrigação, quando penso na minha mãe não consigo pensar em coisas boas, ela sempre viveu mal, mas nunca fez nada para viver bem… é essa contradição da que todos nós experimentamos em maior ou menor medida… Quando achamos ela, o corpo já fedía, estava coberta de poeira, os insetos estavam numa festa só… Fui eu que achei o corpo, quando vi o rancho sai correndo na frente de todo mundo… Quando entrei na sala me invadiu o cheiro, vi sangue, o corpo inerte, uma rata saiu correndo… Gritei avisando e sumido em pânico. Depois, entrou meu pai e meu irmão, eu segurei minha irmã para que não visse. Foi traumático. Pegamos um balde velho, uns trapos que por ali estavam e limpamos o corpo com os panos umedecidos.
De fato ela chegou naquelas terras antes do meio dia, andou pelo galpão em que tinha encontrado o marido e Juçara fazendo sexo, relembrou a traição, reviveu as imagens em sua mente, aquelas que suas retinas tinham segurado para sempre. Mas neste momento de despedida nem tudo foi tristeza. A esposa lembrou de momentos felizes também. Sempre as lembranças enfeitadas pela pobreza e pela esperança do que poderia ter sido. Lembrou a única vez em que traiu o marido, foi naquele campo também, grávida do filho que a odeia, por vingança, depois do episódio da Juçara, nem foi pela traição, foi pelas bofetadas que se vingou, porque traída ela já era fazia tempos. Desde que começou a namorar o futuro marido tinha sido alvo de traição. O sexo é coisa que não se concilia sempre com amor. Quando traiu o marido, ela estava ali mesmo em seu rancho, e um daqueles rapazes solteiros foi pedir, que o marido mandava, a serra. Ela se insinuou, pra mulher sempre é fácil conseguir sexo… E ela, agora, ali, naquele rancho vazio, húmido, feio, sujo, lembra que doeu, não foi bom, mas relembra o gosto da vingança… E num pensamento estúpido de vingança também, se senta numa cadeira pequena que há no escuro rancho, no qual mal entra o sol, se acomoda, carrega o revolver, bota o cano na boca, começa a suar frio… Pensa por um instante em hesitar… Mas não hesita… o cano está frio, sente o metal duro e indiferente na língua, fecha os olhos, escuta ao longe o cantar de um passarinho que não consegue identificar… até que percebe que é um pardal e puxa o gatilho. A cabeça explode em mais de cem pedaços, um deles dá na lâmpada do rancho que com o impacto passa a se menear freneticamente por uns instantes, até ir diminuindo a velocidade e ficar novamente como tudo por ali, em ausência de movimento. Só o maxilar inferior ficou preso ao pescoço. A suicida morreu como todo mundo, sem pena nem glória, mas o estrondo do tiro foi à convocatória dos mais estranhos insetos e animais roedores que fizeram presença no espetacular banquete que oferecia seu corpo inerte.
-Já disse, eu odeio minha mãe e nunca irei ao cemitério levar flores!
Miguel Salvador Lemos Baladan é professor de Literatura hispana e de língua espanhola. Possuo um mestrado em Letras (UFRGS) e atualmente estou cursando o doutorado, também em letras. Sou autor do livro Camilo José Cela contra la Guerra Civil (2019), assim como possuo diversas publicações de artigos sobre crítica literária.


Bravo Salvador !!! Muito bom !!!
O que mais gostei:
Inspiradora a citação de Sísifo.
O suicida nunca quer deixar de viver, o que quer é deixar de viver a vida que vive.
Sempre as lembranças enfeitadas pela pobreza e pela esperança do que poderia ter sido.
Acho que nos pariu e amou por obrigação.
Obrigado Neusa!